Lutando contra seus impulsos, tentando dominar suas fraquezas, vulnerável aos movimentos que não entende, justamente aqueles que definem os rumos de como será sua vida frente às incessantes mudanças do mundo que o rodeia, o homem enfrenta seus íntimos pesares como consegue, lida com suas inadequações mais flagrantes enquanto devota-se a sufocar aquilo que sabe que nunca há de lhe dar sossego, que arruína silenciosamente seu espírito, que aflora-lhe à pele e revela o monstro que esconde. Sozinho do berço ao túmulo, sujeito à vasta gama de intempéries que o ameaçam com uma violência que nem sempre é capaz de suportar, o gênero humano escapa por um triz a algumas trapaças do destino, permitindo-se gostosamente enredar nas teias do imponderável, depois de haver vislumbrado todas as chances de evitar o abismo e ter preferido lançar-se com tudo em suas profundezas.
A vida é mesmo um mistério, e circunstâncias inexplicáveis — e não raro sinistras — sempre hão de sobrepujar a jornada de cada um em algum momento, até com uma frequência intolerável, insana, misturando tudo ao caos que faz com que o existir pareça imerso numa substância untuosa que interdita qualquer movimento, dando a impressão de que a realidade cedeu lugar a uma condição muito específica, como se um sonho, longo, extenuante, que suga as energias de quem dorme e tenta, em vão, manipular aquelas imagens a seu gosto. Ao se dar conta, enfim, de que está encarcerado a memórias de que deveria livrar-se — malgrado jamais pudesse —, de que sua história até ali, em maior ou menor medida, há de manifestar alguma influência sobre os rumos que toma agora, de que está a reboque dos desmandos de seu próprio pensamento, no labirinto nebuloso de sua cabeça tão instável, cabe ao homem apenas convencer-se de que viver é mesmo a cornucópia de delírios que lhe parecia desde tenra idade. O que não tem explicação, o que não tem nome, muito do que a razão não alcança pauta a narrativa dos dez filmes que compõem a lista abaixo. Em “O Enfermeiro da Noite” (2022), Tobias Lindholm se debruça sobre a loucura assassina de Charles Cullen, um anjo da morte que passa ao largo das preocupações dos hospitais onde trabalhara até que, finalmente, é desmascarado. Outro enfermeiro, dessa vez o protagonista de “Quem com Ferro Fere” (2018), de Paco Plaza, põe à prova o sangue frio da plateia com um plano de vingança que, parece, será bem-sucedido — parece. “O Enfermeiro da Noite”, “Quem com Ferro Fere” e mais oito títulos, à disposição do assinante da Netflix, elencados de acordo com o ano de lançamento mais recente e por ordem alfabética, dissecam, quase de forma literal, esse caráter predatório do homem, caçador de sua própria espécie, lobo em pele de lobo.
As Linhas Tortas de Deus (2022), de Oriol Paulo
Num tempo em que somos tomados pela necessidade de contar com heróis e heroínas que tenham o condão de nos regalar com a desejada salvação, nos descobrimos vítimas de um enredo diabólico que nós mesmos escrevemos, e que cujo desfecho, claro, não pode ser feliz. O espanhol Oriol Paulo tem tarimba em apresentar narrativas em que a audiência se questiona sobre o que pensa estar absorvendo da história, tão densa a atmosfera de enigma que prima por empregar em seus filmes. No recém-lançado “As Linhas Tortas de Deus”, o diretor não tem cerimônia quanto a acionar sua cornucópia de polêmicas, todas muito bem embaladas por uma trama muito bem conduzida e muito bem ancorada na performance de uma das grandes estrelas do cinema hispânico atual.
Jaula (2022), de Ignacio Tatay
Ninguém nasce pai ou mãe, naturalmente: educar e prover o sustento de um filho é uma habilidade que só o tempo pode conferir, com maior ou menor empenho das partes em questão, até que mais variáveis façam-se observar. Esses obstáculos para a harmonia de duas pessoas que se gostam, por mais que se desentendam, tomam a forma de uma garotinha aparentemente indefesa e inofensiva, encarnação de um mistério que se abate sobre um casal perdido em suas ilusões. “Jaula” (2022), é uma máquina bem azeitada em que o suspense recrudesce e diminui, da mesma forma que o enredo, banal no início, perturbador depois. O thriller do espanhol Ignacio Tatay é uma história nada fácil contada sem dificuldade.
O Desconhecido (2022), de Thomas M. Wright
“O Desconhecido” (2022) é um filme singular. Evitando abusar da violência, Thomas M. Wright, o diretor-roteirista, escancara situações do expediente policial que o público leigo nem sonha serem possíveis. Tentando encontrar alguma resposta minimamente sensata que aponte uma justificativa para a degradação moral em que mergulhamos todos há algum tempo, Wright compõe uma narrativa ligeiramente farsesca, entre a sátira e o ensaio, sobre policiais que fazem o que lhes autoriza a lei — ou seja, muito pouco — na intenção de levar a cabo a investigação de um assassinato. Uma vez que se dão conta de que observar todos os ritos legais é, mais do que inútil, contraproducente, um deles em especial aposta a última ficha, numa manobra arriscada que pode redundar em derramamento de sangue, começando pelo seu. O texto de Wright prima pela sutileza, mas nunca se deixa levar pela ambiguidade fácil. Aqui, ninguém fica muito bem no papel de mocinho; entretanto, cada personagem desempenha o papel que dele se espera, sem muita margem para grandes tergiversações.
O Enfermeiro da Noite (2022), de Tobias Lindholm
Os incontáveis golpes com que nos assalta o destino vêm em boa parte sob a forma de apuros de saúde, sem a qual pouco se pode fazer e contra os quais é mister lutar. Ganhar a vida com o suor do próprio rosto, com trabalho, honesto, digno e capaz de absorver-nos de tal maneira que esquecemos das questões fundamentais e inadiáveis que nos atormentam em segredo, é um princípio imperioso pelo qual se guia toda mulher e todo homem que se pretende admirável, nem que seja para si mesmo. No fundo, é disso que se trata “O Enfermeiro da Noite” (2022), a história de um assassino em série devotado, que foi deixando um rastro de mortes ao longo de mais de sete anos, mas principalmente o tributo a uma mulher singular. O diretor Tobias Lindholm é hábil em manipular o foco do espectador para uma direção e, aos poucos, fazê-lo notar a grande personagem que deixa a o segundo plano e ocupa o centro do roteiro de Krysty Wilson-Cairns, baseado no livro homônimo de Charles Graeber sobre um evento melancolicamente verídico.
O Pálido Olho Azul (2022), de Scott Cooper
“O Pálido Olho Azul” sobrepuja o básico da narrativa de suspense. Socorrendo-se de elementos técnicos, Scott Cooper tem o condão de ressuscitar o interesse por um dos mais ousados escritores de todos os tempos, ao passo que escapa ao óbvio escolhendo fixar-se nos detalhes que seduzem sua audiência, seja pelo olhar, seja pelo que é dito. A impecável fotografia de Masanobu Takayanagi dirime qualquer dúvida quanto as pretensões de Cooper, transportando o espectador para o cenário, tão aterrador quanto lindo, do Vale do Hudson, nas imediações da Nova York de 1830 durante um inverno rigoroso, que se encarrega de tornar o clima especialmente lúgubre.
The Soul (2021), de Cheng Wei-hao
O cinema asiático vem conseguindo quebrar paradigmas e preconceitos e adquire cada vez mais proeminência, em todos os gêneros, dando corpo às tramas mais complexas e trazendo novos olhares sobre questões que se imaginavam emboloradas — e faz tudo isso com competência e originalidade, muitas vezes misturando uma série de linguagens fílmicas numa trama só. Em “The Soul”, o assassinato de um grande empresário dá azo a uma investigação minuciosa por parte do promotor Liang Wenchao e sua esposa, a agente A Bao. Aos poucos, eles vão decifrando os muitos mistérios do caso, como o de que todos os que eram próximos ao morto apresentavam razões muito sólidas para acabar com ele. A partir de então, percebem que estão em grande perigo se não descobrirem logo a identidade do criminoso.
A Ligação (2020), de Lee Chung-hyun
Que o cinema sul-coreano vai muito bem, obrigado, ninguém pode negar. Essa tendência tem se cristalizado desde 2019 com o lançamento de “Parasita”, para o bem-estar do mercado e a felicidade do respeitável público. No instigante “A Ligação”, Lee Chung-hyun reúne mistério, ação e uma boa pitada de elementos sobrenaturais para deixar o espectador de cabelo em pé e com a pulga atrás da orelha. Este é “o” filme para quem topa fazer algumas concessões à lógica e ficar preso no sofá.
Quem com Ferro Fere (2018), de Paco Plaza
Que atire a primeira pedra quem nunca se flagrou atormentado por crises de consciência, vindas à tona depois de anos de contas a ajustar com o passado. Graças às muitas ironias do destino, Mario, ex-viciado em heroína que perdeu o irmão para a droga, tem a oportunidade de se reencontrar com o homem que quase arruinou também a sua vida. Mas a própria vida já mudou bastante: Mario está muito mais interessado em cuidar da mulher, grávida do primeiro filho do casal, e administrar a carreira de enfermeiro-chefe num grande hospital especializado em idosos do que nos prazeres fugazes de outrora. E é nessas condições em que se reencontra com seu antigo algoz, um chefão do narcotráfico que ainda hoje estende seus tentáculos pelo mundo todo, enquanto, alquebrado por uma doença degenerativa, luta para sobreviver e morrer com alguma dignidade, chance que o irmão de Mario não teve.
Corra! (2017), de Jordan Peele
A vida em sociedade se nos apresenta como um desafio a ser vencido todos os dias, porque, além de todo dia ter seus próprios obstáculos e as alegrias raras que valem por toda a angústia de existir, socorre-nos esse poder, o poder de simplesmente passar por cima de quem preferiria que não estivéssemos aqui. Depois de uma longa carreira diante das câmeras em filmes não exatamente densos, Jordan Peele se resolveu a dar vida às histórias que merecem ser contadas, e já não era sem tempo. Confrontando um dos temas mais urgentes do nosso tempo, “Corra!” (2017) tem o condão de arrastar o espectador para o centro de uma narrativa perturbadoramente sedutora, mas também exigente, que demanda dele atenção e sensibilidade em igual medida. Peele sabe muito bem do que está falando: o recrudescimento do pensamento racialista após uma brevíssima trégua, abordada em seu roteiro algumas vezes, vem a lume sob a forma mais delirantemente agressiva, momento em que o diretor-roteirista aproveita para ir mais fundo na discussão que torna seu trabalho tão relevante.
A Próxima Pele (2016), de Isaki Lacuesta e Isa Campo
O reencontro de uma mãe com seu filho, desaparecido há alguns anos, deveria ser motivo só para abraços calorosos, choro convulso e a sensação de se estar tirando das costas um peso inestimável. Contudo, em “A Próxima Pele” Isaki Lacuesta e Isa Campo apresentam um cenário tão pouco nítido, com personagens que se mantêm tão longe do público, que à primeira vista é impossível dizer se essa virada é mesmo benéfica. Lacuesta e Campo tomaram essa premissa emprestada do documentário “The Imposter” (2012), de Bart Layton, sobre um garoto supostamente vítima de sequestro e tortura aos treze anos que revê os pais três anos depois, o que dá azo a uma série de desconfianças do casal. Em seu filme, lançado em 2016, os diretores são pródigos em subir e descer o tom melodramático da história a depender do que esteja sendo mostrado — e por quem —, conferindo à produção, uma parceria entre Espanha e Suíça, diversos prêmios no Festival de Cinema de Málaga.