Com alguma assiduidade, somos desafiados a encontrar motivos para ratificar nossa crença na vida, passando por cima de todo o desalento que embrutece e paralisa; de toda a melancolia, que na dose imprópria, deixa o céu nebuloso da sadia reflexão e avança ao pântano da dúvida imanente e ubíqua, acerca de qualquer um e em qualquer parte; de tudo quanto tenta nos demover do sonho de dias menos sombrios e gente mais risonha, o ideal mais singelo e mais intricado a que se pode aspirar. Num só movimento, viver torna-se uma sucessão de luzes e sombras que se atraem e se repelem e se equivalem, subidas e descidas bruscas e repentinas como num brinquedo macabro, entradas e saídas de labirintos claustrofóbicos que se estreitam ainda mais conforme tomamos pé de nossas humanas limitações, agudizando a impressão de que no espírito do homem cabem mesmo todos os sonhos do mundo, mas nele encrustam-se igualmente muitas das côdeas que enxovalham o mundo para muito além da vã filosofia deste plano tão rasteiro.
A inadequação fundamental do gênero humano para com o meio que o cerca; a felicidade incompatível às nossas angústias também por ser feliz; a vida ela mesma, plena de suas circunstâncias inexplicáveis e dos tantos perigos à espreita mesmo nos trechos mais retos e iluminados dos caminho; o delírio pairando sobre a realidade sisuda, pronto para tartamudear a litania lírica e lúgubre da loucura; os esforços inúteis do homem comum em sua saga triste por livrar-se do amanhã invencível; a fronteira que não se revela, mas aparta o caos do inferno: em todos os sete títulos que congregamos na lista abaixo nota-se, de uma forma ou de outra, essa dicotomia essencial da alma humana. Queridinho de dez entre dez cinéfilos ao redor do mundo, o mexicano Alejandro González Iñarritu é um dos nomes que despontam na corrida maluca ao Oscar 2023 com “Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades”, disputando o prêmio de Melhor Filme Estrangeiro. Se El Negro brilha com a história de um jornalista exilado na própria vida, Rian Johnson reedita o estrondoso sucesso de “Entre Facas e Segredos” com “Glass Onion: Um Mistério Knives Out”, em que se aprofunda nos joguinhos, digamos, excêntricos de ricaços tão entediados quanto doidos. Acrescidos aos outros cinco, os dois longas configuram momentos dos mais vitoriosos do cinema na Netflix em 2022 e neste início de 2023. Observamos o critério de sempre, em ordem alfabética e do mais novo para o de lançamento mais atual. Sinta-se desde já convidado a assisti-los e nos dar sua opinião, sempre tão preciosa.
Infiesto (2023), de Patxi Amezcua
O apocalipse vem como se em ondas, arrastando os homens para o centro de eventos sobre os quais não tem nenhum controle, dominado por circunstâncias que tomam-lhe anos até que se esclareçam. O recorte que Patxi Amezcua propõe em “Infiesto” faz de uma catástrofe do nosso tempo, um misto de incúria, negligência, desmazelo e horror, presta-se a alicerce de uma espiral de mistérios, indóceis à vontade de quem se esmera por desvendá-los. A partir de março de 2020, a humanidade passou a ter de acarar o resultado diabolicamente palpável de décadas de degradação ambiental, constituída de uma convivência promíscua e desrespeitosa entre seres humanos e o meio que os acolhe, transformada num genuíno caos à medida que se foram avultando a inépcia e o descaso com que se conduziu o problema.
Glass Onion: Um Mistério Knives Out (2022), de Rian Johnson
Em “Glass Onion: Um Mistério Knives Out”, segundo filme de uma trama que tem muita lenha para queimar, Rian Johnson mantém a linha de um suspense bem elaborado, abrindo o horizonte dramático dos tipos que apresenta, ricaços entediados que se dedicam a joguinhos tolos, mas perigosos, para esquecer sua irrelevância. Aludindo a uma canção dos Beatles, o roteiro de Johnson ilumina as muitas camadas aparentemente translúcidas das relações humanas, hábeis em filtrar toda a luz que lhes possa atravessar e vertê-la numa energia pouco benfazeja. Como não poderia deixar de ser, o diretor segue reverenciando — de um modo bastante original, que se diga — Agatha Christie (1890-1976), sem prejuízo dos trechos cômicos que se prestam a um tempero bem dosado para uma narrativa saborosa, estilo de que a Dama do Crime decerto não se ressentiria.
Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades (2022), de Alejandro González Iñárritu
Alejandro González Iñárritu parece continuar firme em seu propósito de não mais tolerar as delicadezas cínicas que sustentam o mundo. Em “Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades”, Iñárritu personifica muitas das neuroses não apenas do gênero humano mas das Américas, da história do continente americano, da glória e do desajuste de ser artista numa era de violências perpetradas das mais diversas maneiras, das mensagens que condenam, das palavras que matam. El Negro, como é conhecido em Hollywood, já conta cinco Oscars no currículo e este seu trabalho mais recente — pleno de toda a originalidade e de todos os maneirismos pelos quais a Academia costuma se enamorar — parece que vai juntar-se aos outros homenzinhos dourados do mexicano. Com seu 13° filme, o diretor inclina-se a escancarar um pouco mais seu choque frente à ignorância maciça que rege nossos dias, espraiada pelos campos mais insólitos e mais urgentes.
Nada de Novo no Front (2022), de Edward Berger
Filmes sobre a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) não são exatamente raros. O palpite, errôneo, deve-se ao fato de muitas dessas produções remontarem a tempos quase esquecidos, dados por mortos, mas que, em razão do comportamento errático e insensato do gênero humano, voltam à baila de quando em quando, trazendo consigo a necessidade de se refletir sobre os rumos a serem tomados pelas nações neste alucinado e alucinante século 21, estigmatizado já na primeira hora como uma era de extremos, violência e medo. “Nada de Novo no Front” (2022) não é, com a licença do trocadilho, novidade alguma. Mais recente adaptação do romance homônimo do alemão Erich Maria Remarque (1898-1970), o filme de Edward Berger, compatriota do escritor, reconstitui os passos de uma longa marcha, iniciada em janeiro de 1929 e protagonizada por um garoto assustadiço, levado a amadurecer na marra em meio à barbárie tão característica de uma guerra.
O Pálido Olho Azul (2022), de Scott Cooper
Adaptado de um romance de Louis Bayard, “O Pálido Olho Azul” sobrepuja o básico da narrativa de suspense. Socorrendo-se de elementos técnicos, Scott Cooper tem o condão de ressuscitar o interesse por um dos mais ousados escritores de todos os tempos, ao passo que escapa ao óbvio escolhendo fixar-se nos detalhes que seduzem sua audiência, seja pelo olhar, seja pelo que é dito. A impecável fotografia de Masanobu Takayanagi dirime qualquer dúvida quanto as pretensões de Cooper, transportando o espectador para o cenário, tão aterrador quanto lindo, do Vale do Hudson, nas imediações da Nova York de 1830 durante um inverno rigoroso, que se encarrega de tornar o clima especialmente lúgubre.
Ruído Branco (2022), de Noah Baumbach
A morte cai bem aos tipos que protagonizam “Ruído Branco”, a nova comédia de absurdos de Noah Baumbach, um arguto observador da natureza humana no teatro do possível e, com mais ênfase, do impossível, da vida, sem que um e outro desses recortes colidam entre si ou interfiram no curso da eterna paranoia que define o gênero humano. Baumbach reedita alguns dos elementos de que lançou mão no incensado “História de um Casamento”, a começar por seu ator principal. Adam Driver encabeça uma trama em que o mergulho no mais baixo do homem visto no filme de 2019 — uma adaptação arejada do sinistro bergmaniano de “Cenas de um Casamento” (1973) — continua a se fazer presente, mas encaixa-se à perfeição no cinismo imanente (e escrachado) de Don DeLillo, em cujo romance o texto do diretor se baseia.
O Suplente (2022), de Diego Lerman
Talvez a única obviedade de “O Suplente” seja mesmo a excelência, o pluralismo, a genialidade dos filmes argentinos. Depois de um debute estrepitoso no Festival Internacional de Cinema de Toronto, o TIFF, no Canadá e provocando ainda mais rebuliço na premiação de San Sebastián, na Espanha, o trabalho de Diego Lerman foi seguindo uma trajetória constante de um encantamento reflexivo ao capturar o espírito do tempo, de implacável crítica às perenes desigualdades sociais, mais ou menos equivalentes ao redor do mundo, e moldá-lo a um recorte muito íntimo da vida em sociedade a partir de um universo cheio de idiossincrasias sobre a dureza de ter por ofício a educação num mundo cada vez bestial.