Minorias sofrem sob qualquer cenário que se possa especular. De 1619, marco zero da sórdida importação de negros escravizados para os Estados Unidos, na então colônia da Virgínia, até 1865, quando a escravatura foi oficialmente interditada pela Décima Terceira Emenda, foram 246 anos de um sistema reacionário — maduro o bastante para sobrepujar, inclusive, o movimento pela independência, entre 1774 e 1776, quando as tropas emancipatórias lideradas por George Washington (1732-1799) levaram a melhor nos enfrentamentos contra a Inglaterra de Jorge 3° (1738-1820), sua metrópole desde 1607 —, avesso a discussões, reformas, pleitos, que respondia queixas com dezenas de chicotadas muitas vezes mortais, e em se levando em conta que o contra-ataque dos ex-senhores de escravos e simpatizantes do escravagismo redundou em leis, idealizadas e aprovadas por congressistas democraticamente eleitos, que cercearam os direitos civis de mulheres e homens afrodescendentes, podemos dizer, acertadamente e sem exagero, que a escravidão nos Estados Unidos durou até 1968, quando se intensificaram as iniciativas de engajamento de cidadãos comuns, a exemplo do reverendo batista Martin Luther King (1929-1968) e do militante radical Malcolm X (1925-1965), frentes  opostas de um mesmo exército, capazes de arrastar multidões com sua oratória e seu exemplo.

A história dos judeus apresenta muitos pontos de contato com a saga dos negros, na América ou fora dela. Vagando pelo mundo por quarenta anos à espera da tal Terra Prometida por Deus, anunciada por Moisés, os hebreus, povo semita da Antiguidade, descendentes diretos do profeta Abraão, só puderam se estabelecer mesmo naquele quinhão de areia banhado pelo Mediterrâneo em 14 de maio de 1948, quando da fundação do Estado de Israel, reconhecida pela comunidade internacional, reparação possível às atrocidades de Hitler no transcurso dos penosos seis anos da Segunda Guerra Mundial, entre 1939 e 1945, durante os quais seis milhões de médicos, engenheiros, advogados, banqueiros, padeiros, carpinteiros, donas de casa judeus — além de comunistas, homossexuais, deficientes físicos, ciganos e todo aquele que não se encaixasse no delirante ideal de perfeição ariana — terminaram de se desintegrar ao cabo de meses de trabalhos forçados nas câmaras abastecidas por Giftgas, um pesticida de alta toxicidade, nos mais de quarenta mil campos de concentração, os KL, mantidos pelo nazismo. Vinte e sete de janeiro foi o dia escolhido pela ONU para que a humanidade se lembre e não esqueça.

Kenya Barris castiga os costumes e traça um paralelo entre essas duas histórias de horror e vitória, superação e luta em “Certas Pessoas”. Ao passo que capta o zeitgeist, o espírito do tempo, e aprofunda-se nos temas de que se precisa falar com urgência ainda mais flagrante, o diretor consegue imprimir originalidade a assuntos espinhosos como intolerância racial, escravidão, Holocausto e racismo contornando o politicamente correto com a galhardia de que só o humor é capaz. Laureado com diversos prêmios da NAACP (Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor), entidade que representa e defende os interesses e a cultura dos negros nos Estados Unidos), Barris não parece se importar nada com a possível impressão que os poderosos tenham dele. Na festiva sequência de abertura, dois rappers entoam em off a batida em que dizem que Obama esconde seu sobrenome do meio, Hussein, como faziam os mafiosos do clã Gambino, um dos mais influentes do submundo da América, para driblar o FBI, e logo depois, como se não bastasse, associam o ex-presidente, o primeiro negro a chegar à Casa Branca — observado de perto por Kamala Harris —, a usuários de crack, por preferirem a mesma marca de cigarro. A cena se ilumina e vê-se que os dois desbocados são Jonah Hill e a comediante Sam Jay, um judeu de quase quarenta anos e meio acima do peso e sua amiga, negra e homossexual, que se dedicam a um podcast sobre cultura afro-americana. O roteiro, de Barris e Hill, é cheio dessas saborosas diatribes, em que a vida dupla de Ezra com Mo, a personagem de Sam Jay, é imolada na sinagoga que frequenta com os pais Shelley, brilhantemente vivida por Julia Louis-Dreyfus, e Arnold, papel de David Duchovny, e a irmã, Liza, de Molly Gordon.

Ezra é um desses tipos que raspam na meia-idade sem saber exatamente que rumo tomar. Numa dessas, cumprindo uma tarefa de última hora que lhe confia um chefe abusivo, tem de se deslocar para um compromisso: é quando conhece, do jeito mais inusitado — o texto de Barris e hill é um achado de inventividade e ousadia —, Amira, a designer de moda interpretada pela esfuziante Lauren London. O relacionamento dos dois anda um tanto depressa, um dos raros pecados do filme, e menos de dez minutos depois Ezra e Amira estão jantando com os pais na casa da futura noiva, tendo por anfitriões Akbar (Woody até a conversão ao islã) e Fatima.

A cena do jantar, em que os pais negros, de Eddie Murphy e Nia Long, perguntam aos pais judeus sobre a importância de Louis Farrakhan, supremacista negro, propagador de teorias conspiratórias sobre a sabotagem dos brancos, em especial os semitas, é o coração de um filme tão nonsense quanto sofisticado, que diz, no fim que cada um é seu próprio universo, e que só o amor importa. Ou deveria importar.


Filme: Certas Pessoas
Direção: Kenya Barris
Ano: 2023
Gêneros: Comédia romântica/Comédia de costumes
Nota: 9/10



Via R7.com