Sempre olhei para os videogames como uma fonte imediata de diversão. Hoje em dia temos bem mais variedade de gêneros e subgêneros, embora as grandes produtoras e suas “fórmulas de sucesso” ainda se destaquem na indústria, deixando títulos menores e mais interessantes na sombra.
É dos jogos independentes que estão nascendo combinações inusitadas de estilos, ideias e mecânicas que podem levar às novas experiências que, principalmente, mexem com o lado emocional como SEASON: A Letter to the Future.
No dia em que saí de casa
O jogo apresenta um mundo onde a era da humanidade está dividida em duas, chamados de “temporada”, com um leve tom apocalítico. Mas invés de lutar por sua vida ou encontrar meios de sobreviver, sua missão é documentar a jornada nesse período de transição. Criar registros para àqueles do futuro conhecerem o que ficou para trás.
SEASON tem um pé no universo fantástico, com um visual deslumbrante, melancólico, curioso e apaixonante, abordando um tempo em que rituais e profecias carregam um peso na crença e nas memórias em um cenário de pós-guerra. Você controla a jovem Estelle, que está para documentar os últimos momentos da atual temporada — neste mundo, quando uma temporada (que dura alguns séculos) acaba, tudo a respeito também é esquecido.
O jogo começa com um ritual de despedida entre a protagonista e sua mãe, que sacrifica algumas memórias para que Estelle tenha sua mente protegida. Neste mundo há algo perigoso, capaz de adoecer a mente, fora do seguro e tranquilo vilarejo nas montanhas em que mora. Mas chegou a hora de partir e explorar o (novo) mundo, não apenas ver, mas documentar toda a sua história e experiências.
Estelle vislumbra sua casa uma última vez, interage com objetos e assim você (jogador) descobre um pouco da vida, dos costumes e razões para a jovem deixar a mãe, ciente de que nunca mais a verá ou retornará à sua cidade natal.
O vilarejo é basicamente um tutorial para saber que a jovem pode registrar paisagens, coisas, animais e pessoas através de desenhos. Ela também carrega uma câmera fotográfica para eternizar momentos e um microfone para gravar sons. De certo modo, é um jogo sobre aventura sobre “documentar” o mundo ao seu redor. Todos os seus registros dão arquivados em um caderno que funciona como diário.
É preciso preencher um mínimo de informações “obrigatórias” no diário para fazer a trama andar, porém há muito mais material e extras que podem ser descobertos por sua pura curiosidade — quanto mais fuçar por aí, mais informações e detalhes da história são descobertas. Por outro lado, seu caderno não tem espaço útil para comportar TUDO o que gostaria de documentar, além de enfeitar. Sim, você pode “personalizar” essa documentação e deixar tudo super estiloso.
As mecânicas no uso da câmera e do microfone são meio lentas, mas de fácil manuseio e rápido domínio. De habilidades físicas, Estelle pode andar ou correr, além de pedalar uma bicicleta que é seu meio de transporte.
Fim de uma era
Ao pegar a bicicleta e pedalar olhando a paisagem ao seu redor… Uau!, o jogo consegue prender sua atenção de um jeito que é quase possível sentir o vento enquanto olha para a tela. Andar de bike é muito gostoso e mecanicamente confortável, e embora simples, fica ainda mais interessante no controle do PS5 graças aos gatilhos adaptativos — alternar entre L2 e R2 faz com que Estelle pedale para ganhar velocidade, mas ao subir ladeira os gatilhos ficam “pesados” de pressionar, correspondendo à sensação de esforço da personagem.
Você pode sair da bike a qualquer momento e apreciar as paisagens, sejam elas os longos e deslumbrantes planos de fundo ou as ruínas e estruturas próximas, que podem contar (ou não) algum fragmento de história ou resquícios de pessoas que estiveram por lá. Há pontos na jornada em que deve-se interage com o ambiente para ter uma visão mais contemplativa, com ângulos certo de câmera e um som incidental suave e anestésico.
Passam-se algumas semanas durante a sua viagem de bike pelo mundo e, eventualmente, Estelle chega ao Vale Tieng, área verdejante e deslumbrante dentro do desfiladeiro que logo desaparecerá com a enchente programada de uma velha represa. O local está repleto de histórias e ainda se encontram alguns habitantes que se preparam para partir, mas é aqui que a trama do jogo se abre de uma maneira primorosa.
Os personagens que aparecem, embora poucos, são interessantes e os textos ainda mais envolventes e há todo um questionamento sobre o luto e as formas como as pessoas escolhem lidar ou não com ele. O vale é imenso e você ganha acesso a um mapa para documentar as áreas, além de poder se localizar com sinalizações do jogo.
As áreas trazem grande variedade e curiosidade, mais experiências e uma porrada de coisas para documentar. Lembrando que nem tudo é necessário para progredir na trama, mas é difícil ver paisagens bonitas, ouvir sons curiosos e não parar e sacar seus equipamentos. Você já mergulhou fundo demais para simplesmente ignorar e avançar rumo ao fim.
Por alto o jogo dura de quatro a seis horas, mas levei quase o dobro por ficar explorando e caçando migalhas de informação ou querendo saber mais sobre os personagens do passado e do agora. E não me arrependo. Uma experiência que consegue ser relaxante, tocante e sensível.
Velhas histórias e novas memórias
No Vale Tieng, você interage com alguns personagens de forma mais constante, que dão gatilhos que podem te deixar mais absorto no jogo. Você conhece Matyora, a artista do vale que conta de seu passado e a arte, Sophon e seu filho que estão lidando com o luto, o último monge do vale que perdeu sua fé e todos que o ajudaram, corpos de vários soldados em um estacionamento que lutaram por sua terra… há muita reflexão sobre a vida, o passado, presente e futuro. E a maneira como as coisas são apresentadas vai bater diferente para cada tipo de jogador.
Segredos desse pequeno pedaço do mundo também se revelam com as flores de lembranças (elas guardam memórias e emitem sons que podem ser registrados, expondo outras histórias de quem já pariu daquele plano), animais, insetos, a passagem do tempo e a transição do dia e da noite aplicando camadas e sensações nas paisagens. Ao se entregar ao jogo e seu ritmo, ele o abraça com uma experiência tocante. Mas tudo tem um fim e a parte final da jornada, embora cause um pequeno estranhamento, consegue fechar a trama de forma interessante.
Meus únicos pontos negativos dentro de toda essa breve, mas gostosa, experiência que é SEASON: A Letter to the Future fica com os personagens não mexerem a boca para acompanhar as falas e também a impressão, em algumas delas, de que faltou uma interpretação para dar o tom certo de emoção na forma como algo é falado em relação ao que está sendo mostrado.
É um jogo denso, mas que não te sobrecarrega de informações, e entrega uma aventura que não tem pressa. Aprecie cada momento, seja curioso e abuse das ferramentas à disposição para descobrir e registrar tudo nos arredores, de suas várias pequenas histórias a lugares interessantes para criar belas memórias.