Às vésperas do aniversário de uma década, a obra reconstitui, misturando realidade e ficção, o incêndio que matou 242 pessoas
Leonardo Sanchez
São Paulo – SP
No rescaldo do incêndio, um grupo de bombeiros entra em cena e se depara com um salão em cinzas, quando uma sinfonia de toques de celular irrompe no silêncio sepulcral. O escuro também se dilui com luzes que se acendem assíncrona e violentamente em telas que repetem os termos “pai” e “mãe”.
Numa das primeiras e mais fortes cenas de “Todo Dia a Mesma Noite”, minissérie da Netflix que retorna à boate Kiss, as lentes da câmera pouco mostram. Mesmo assim, captam um horror maior que o de qualquer filme ou série mais gráfico ao traduzir, sem sangue ou palavras, o tamanho simbólico da tragédia que atingiu Santa Maria, no Rio Grande do Sul, em 27 de janeiro de 2013.
Às vésperas do aniversário de uma década, a obra reconstitui, misturando realidade e ficção, o incêndio que matou 242 pessoas na boate que operava com irregularidades e que ardeu em chamas devido ao uso de fogos de artifício incompatíveis com ambientes internos e de uma espuma de isolamento também inadequada.
São cinco episódios difíceis de assistir, que começam nas horas que antecederam aquela fatídica festa e terminam quase agora, com a ainda inacabada busca por justiça dos parentes e amigos das vítimas fatais. Além delas, mais de 600 pessoas ficaram feridas, algumas com sequelas físicas permanentes.
Reabrir essa ferida ainda muito recente pode parecer danoso, aproveitador até, ainda mais em meio à popularidade galopante do true crime, gênero que faz ficção a partir de crimes reais.
Mas Julia Rezende, diretora que em “Todo Dia a Mesma Noite” se afasta de suas comédias no cinema, como “De Pernas pro Ar 3” e “Depois a Louca Sou Eu”, diz que há uma função social por trás do projeto e que era importante voltar a jogar luz sobre o caso.
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“Não queremos que essa história caia no esquecimento, então essa série é uma denúncia, uma forma de lembrar que essas famílias que buscam justiça há dez anos seguem sem uma resposta”, diz.
“Fomos muito cuidadosos na hora de decidir o que e como mostrar, então o som é essencial, bem como o foco da câmera. Quando estamos com um personagem, tudo ao redor fica desfocado, justamente para tornar aquilo tolerável.”
O roteirista Gustavo Lipsztein completa dizendo que era preciso dar nome às 242 vítimas, enquanto o elenco reforça que a direção de uma mulher foi essencial para conferir delicadeza e sensibilidade à produção, algo que Leonardo Medeiros, Thelmo Fernandes e Debora Lamm acreditam que talvez não tivesse sido alcançado sob um olhar masculino.
Essa discussão do que mostrar guiou cenas como a em que o pai vivido por Fernandes, depois de procurar pela filha em todos os hospitais de Santa Maria, vai ao ginásio para onde os corpos foram encaminhados para reconhecimento.
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Antes da saída para a boate, ele havia presenteado a filha, Mari, com um tênis cheio de estrelas. É enquanto a câmera percorre os pés estendidos que descobrimos, junto ao personagem, que a jovem está entre os mortos.
Além de Fernandes, Lamm e Medeiros também vivem os pais da tragédia Bianca Byington, Raquel Karro, Paulo Gorgulho e Bel Kowarick. Seus personagens são inspirados nas figuras reais que estão à frente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria e que, na segunda parte da minissérie, travam uma briga mordaz na Justiça.
Seus filhos em cena também foram escolhidos para representar os vários perfis que estavam na boate Kiss naquela noite, incluindo diferentes classes sociais, idades, tribos e origens. Entre as vítimas não fatais que o público acompanha há dois estudantes daquela cidade universitária -um rapaz que tem quase todo o corpo queimado e uma moça que perde uma perna.
Elenco, Rezende e Lipsztein, no entanto, não falaram com os personagens reais ligados ao incêndio. O trabalho de pesquisa para “Todo Dia a Mesma Noite” já havia sido feito pela jornalista Daniela Arbex, vencedora do Jabuti, o prêmio mais importante da literatura brasileira, que revisitou tragédias brasileiras em obras como “Holocausto Brasileiro”.
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Há seis anos, ela lançou um livro homônimo sobre a boate Kiss pela Intrínseca após um longo trabalho de pesquisa. Agora, atuou como consultora criativa da série. “Não dizer não minimiza o sofrimento dos pais, então eu pergunto: a quem interessa o silenciamento dessa história?”, questiona, ao justificar a existência das obras.
É de fato com horror que o público redescobrirá detalhes que talvez passaram despercebidos ou que foram esquecidos ao longo dos últimos dez anos. A espuma usada na boate, um médico explica numa cena, ao queimar exalava cianeto, composto químico também usado nas câmaras de gás nazistas no Holocausto. Alguns diálogos são quase didáticos, como que para elucidar fatos mais obscuros.
“A gente precisa construir esse caso na memória coletiva do Brasil para que o que te indignou ao ver a série não aconteça mais. A gente precisa revisitar essa história e muitas outras, porque é urgente”, afirma Arbex.
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Ela conta que cenas vistas na produção, como a que um morador de Santa Maria ataca verbalmente uma mãe porque cansou de ver a tenda da associação repleta de fotos das vítimas na praça da cidade, realmente aconteceram.
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Hoje, dez anos depois do terceiro maior desastre em casas noturnas do mundo, ninguém está preso, já que o processo vem percorrendo diversos tribunais e instâncias devido a tecnicalidades e interpretações difusas da lei.
A associação de pais tentou sem sucesso responsabilizar políticos e outras autoridades públicas de Santa Maria. Hoje, eles aguardam o fim do julgamento dos donos da boate, que a deixaram operar acima da capacidade, sem alvará, com extintores de incêndio disfuncionais e isolada com espuma imprópria. Querem ainda a responsabilização dos membros da banda que se apresentava, por terem acendido equipamentos pirotécnicos proibidos para uso interno, mais baratos do que os adequados.
É como se, apesar da minissérie, “Todo Dia a Mesma Noite” fosse uma obra em aberto.