Margo Price fez sua estreia oficial no cenário musical em 2016, com o lançamento do aclamado ‘Midwest Farmer’s Daughter’. Pouco depois, Price foi nomeada com a próxima estrela da música country nos Estados Unidos, apresentando uma nova faceta do gênero ao mainstream e conquistando milhões de fãs ao redor do mundo. Agora, três anos depois de sua última incursão, ela está de volta com o ótimo ‘Strays’ (o primeiro grande álbum de 2023), que continuou apostando fichas em narrativas pessoais, declamatórias e reflexivas, através de uma agressiva pintura sobre o mundo e sobre sua vivência em uma sociedade que muda drasticamente, dia após dia.
A produção se inicia com a potente “Been To The Mountain”, que nutre de semelhanças estruturais com o recente ‘Run, Rose, Run’, de Dolly Parton, exaltando o country-rock através de uma narrativa pungente e bastante relacionável. Aqui, a cantora e compositora se vale de uma progressão propositalmente repetitiva, que se alastra pelos mais de cinco minutos da faixa, mergulhando em uma espécie de metadiegese em que a cíclica presença da guitarra e do baixo dialogam com os impecáveis versos (“eu conheço o cheiro da morte como um perfume” é uma das melhores construções líricas do ano, e olhe que estamos em janeiro ainda). Price se rende a uma melancólica compreensão da vida, mascarada pelas notas frenéticas, dizendo a plenos pulmões que, mesmo tendo passado por muita coisa, continua a se sentir deslocada.
À medida que Margo se aventura em incursões não exploradas em sua discografia, ela não abandona as raízes do country – como visto na irretocável canção “Radio”, performada ao lado de Sharon Van Etten. A breve track poderia se alongar para vários minutos de duração e, de fato, não sentiríamos o tempo passar. A química vocal de ambas as artistas é invejável e comovente, destilando uma explosão estoica de solidão – algo que é buscado pelo eu-lírico, não imposto. “Eu preciso tirar um tempo de folga” dá início a uma jornada de autodescoberta que presta críticas à efemeridade do tempo e das próprias relações humanas – com detalhes enraizados na crescente ambiguidade dos avanços tecnológicos. Já “Change Of Heart”, mantendo-se fiel ao americana e ao bluegrass, tem um desenrolar críptico e angustiante que fala sobre um relacionamento falido – e que vem acompanhado de uma multiplicidade coesa de camadas, cortesia da produção on point de Jonathan Wilson.
É claro que a temática romântica voltaria a aparecer no exuberante catálogo da artista – mas, diferente das obviedades líricas intrínsecas a histórias desse tipo, Price sabe o que está fazendo e como se respaldar na iconografia literária para passar suas mensagens. Tal temática é associada com força às baladas, como na cândida atemporalidade de “County Road”, cuja simples produção (movida a bateria, violão e baixo), fala sobre amadurecimento e sobre um saudoso amor que pode até não mais voltar, mas deixou memórias inapagáveis; ou “Time Machine”, que já apresenta uma configuração mais animada, com a insurgência da celesta como instrumento quase didático – uma escolha interessante, que conversa com a nostalgia da canção, mas que soa apagada em meio às outras construções.
Margo tem um apreço significativo pelo folk, mesmo que ele não apareça de forma pura no álbum. “Hell In The Heartland”, que traz elementos da discografia de Parton e de Emmylou Harris, deixa o baixo e a bateria como apoios para a sutileza amalgamada da percussão, do tamborim e inclusive de um apaixonante órgão que pormenoriza cada engrenagem da canção – isso sem comentar as bem-vindas dissonâncias que emergem aqui e ali. “Anytime You Call”, performada ao lado de Lucius, nos lança de volta para os anos 1970 e parece pegar páginas emprestadas de ‘Daddy’s Home’, recente produção de St. Vincent, para um country-rock que não perde a mão em nenhum momento e parece nos engolfar em um cosmos único e inescapável.
“Landfill”, track que finaliza a espetacular jornada da artista, é o encerramento perfeito para um melancólico retrato do que significa estar vivo. “Eu poderia construir um aterro de sonhos que abandonei” é apenas o início de uma trágica história que, de certa maneira, finaliza o senso de não-pertencimento discutido pela cantora em “Been To The Mountain”, entendendo que a desistência é, por vezes, o melhor caminho para seguir em frente – por mais que as marcas existem. Aqui, os mesmos instrumentos mencionados nos parágrafos acima aparecem, mas são rearranjados de modo quase metamórfico, garantindo que cada uma das dez música seja distinta e evoque um sentimento diverso.
‘Strays’ é um poderoso e sólido álbum que merece lugar na sua playlist e que, a cada revisitação, mostra algo novo. O próprio título, cuja tradução para o português é desgarrados, revela o que esperar do compilado uma montanha-russa efervescente que traduz, por meio da música, a psique humana em si e o fato de que existir não é uma tarefa fácil.
Nota por faixa:
1. Been To The Mountain – 5/5
2. Light Me Up, feat. Mike Campbell – 4/5
3. Radio, feat. Sharon Van Etten – 5/5
4. Change Of Heart – 5/5
5. County Road – 5/5
6. Time Machine – 3/5
7. Hell In The Heartland – 5/5
8. Anytime You Call, feat. Lucius – 5/5
9. Lydia – 5/5
10. Landfill – 5/5
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