Em um quarto à meia luz, o pequeno Enrico, de 4 anos, brinca animado em cima de um dos dois leitos. Mesmo com um cateter conectado ele pula, fica de ponta cabeça, tudo isso no limite das grades de uma cama hospitalar. Tanta energia surpreende até mesmo a mãe do menino, Gisele Paixão, que aos 43 acompanha os tratamentos do caçula.
Os quatro anos foram comemorados em casa, no último domingo (23), com um gostinho a mais, já que o primeiro diagnóstico, no hospital regional, em Cerqueira Cesar, interior de São Paulo, veio acompanhado da expectativa de que o pequeno viveria até os três anos.
O quarto aniversário é comemorado junto a outra data especial, pois é na mesma semana do Dia Mundial e do Dia Nacional das Doenças Raras, 28 de fevereiro, que em 2025 tem o lema Carregue as suas Cores.
A estimativa é que 13 milhões de pessoas convivam com doenças raras no Brasil, algo perto de 5% da população. São cerca de 5 mil doenças registradas, segundo o Ministério da Saúde, a maior parte com incidência baixíssima, menos de um mil pacientes conhecidos no país.
Enrico teve uma doença degenerativa, uma necrose no intestino. É uma doença rara, classificação dada pelo Ministério da Saúde àquelas doenças que acometem 65 pacientes para até 100 mil pessoas. No caso dele, após a perda do intestino delgado, ficou com apenas 5 centímetros do órgão e precisa ser alimentado por um acesso, 15 horas por dia, pois a parte que lhe restou é pequena demais para absorver nutrientes.
A condição de Enrico é uma dentre algumas dezenas de doenças raras que levam a perdas significativas do aparelho digestivo. O quarto no qual está internado fica na capital paulista, em um dos dez andares do Hospital Municipal Infantil Menino Jesus (HMIMJ), concedido à gestão de uma organização social, o Instituto de Responsabilidade Social Sírio-Libanês (IRSSL), ligada ao Hospital Sirio-Libanês.
O tratamento é gratuito, pelo SUS, e a instituição tem parcerias voltadas para modernização de equipamentos e reformas pontuais, que não são atendidas no financiamento normal da instituição. Ainda assim, não faltam recursos, ânimo e interesse das equipes, segundo a diretora Jamile Brasil, que começou a trabalhar no hospital há 16 anos como pediatra residente, após se formar em medicina na Bahia.
A duas quadras da Avenida Paulista, o hospital Menino Jesus tem uma das fachadas mais recatadas na região, o que esconde um cotidiano movimentado. Atende dez mil crianças por mês e é referência nacional no atendimento da síndrome do intestino curto, sendo o primeiro centro na especialidade no país.
A especialização veio na década passada, paralela ao amadurecimento da Política Nacional para Doenças Raras, quando o hospital passou a integrar o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS).
Tratamento domiciliar
Em 2016 começaram o programa de desospitalização, o mesmo que permitiu ao Enrico voltar para casa depois de 1 ano e 8 meses internado em diferentes unidades.
A primeira desospitalização do programa foi em 2018. Desde então, das 111 crianças atendidas, 78 já puderam voltar pra casa. Assim como no caso de Enrico, elas contam com médicos de apoio, com quem a família tem uma linha direta de contato e que orientam no caso de qualquer dificuldade ou sintoma diferente. As famílias também têm apoio de enfermeira da prefeitura, que visita regularmente e ajuda a equipe a entender como o tratamento está evoluindo. Desde 2018, mais de 50 pacientes do Menino Jesus receberam o tratamento domiciliar, 60 cirurgias foram realizadas e o índice de sobrevida dos pacientes em nutrição parenteral domiciliar chegou a 98%.
“Sempre é difícil. A gente sempre zela pela saúde dele, porque ele é uma caixinha de surpresas”, conta Gisele.
A mãe explica que os períodos de internação têm diminuído, assim como sua frequência, e que as infecções, antes constantes, são cada vez mais raras. O resultado é mais tempo com o filho em casa, sempre que possível aproveitando uma das atividades favoritas: andar de bicicleta. Ainda com a mãe pedalando, mas sempre muito animado.
Diagnóstico
A equipe multidisciplinar recebe encaminhamento diretamente das Unidades Básicas de Saúde e de Atendimentos Médicos Ambulatoriais, e é quando os especialistas começam a o processo de diagnosticar doenças raras, que pode levar anos.
Para Vitória Sophia foram cerca de 5 anos até identificar a síndrome de Coffin-Siris (SCS), que causa uma série de dificuldades para a jovem de 12 anos. Ela tem comprometimento no desenvolvimento mental e motor, déficit de crescimento, bastante agitação e crises convulsivas durante o sono, vindas de um quadro de epilepsia de difícil controle. Mesmo tendo feito o diagnóstico, a neurologista do Menino Jesus Luciana Midori explica que é necessário continuar investigando o quadro de Vitória Sophia, pois as doenças raras também podem estar ligadas a outras patologias.
Maria Ivaneide, mãe da VItória, assim como muitos outros pacientes, vem de longe e precisa aguardar a filha no atendimento, pois o deslocamento de volta para casa não compensa o esforço ou mesmo não é suficiente dentro das 4 horas de atendimento. O grau de disponibilidade que a condição de Vitória exige fez com que Maria precisasse parar de trabalhar, há três anos. Trabalhando em serviços domésticos, ela costuma atuar somente aos sábados, como diarista, quando consegue que a irmã cuide da pequena.
A neurologia no HMIMJ é uma das portas de entrada do paciente, mas é comum que eles sejam encaminhados para outros acompanhamentos e especialidades dentro do ambulatório, e para o atendimento de nutricionistas, enfermeiros, assistentes sociais e psicólogos. “É dessa forma que encontramos as doenças raras ocultas e que são de difícil diagnóstico nos postos de saúde”, explica a diretora do hospital, Jamile Brasil.