O conflito no Oriente Médio tem entre seus principais elementos a busca de Israel por consolidar-se como um Estado. A base política-ideológica que deu origem à construção desse Estado é chamada de sionismo. Por isso, para entender o atual conflito no Oriente Médio, é preciso voltar no tempo.

O sionismo é um movimento surgido no século 19 na comunidade judeus na Europa que buscavam uma solução para a questão judaica. Naquela época, o antissemitismo – que é a discriminação contra os povos semitas, entre os quais, está o povo judeu – estava em crescimento no continente.

Foi o sionismo enquanto movimento político que deu corpo à criação do Estado de Israel, em 1947, logo após o Holocausto na Europa, quando cerca de 6 milhões de judeus foram assassinados, principalmente em campos de concentração da Alemanha nazista. O termo sionismo faz referência ao Monte Sião, nome de uma das colinas de Jerusalém e usado como sinônimo de terra prometida, ou terra de Israel.

A definição do conceito sionismo gera divergências entre estudiosos e militantes de movimentos favoráveis e contrários à criação de um Estado judeu. Enquanto algumas correntes de pensamento apontam para o caráter político do sionismo, outros acreditam que o movimento é necessariamente baseado na religião judaica.

Além disso, enquanto seus defensores apelam para a necessidade de se estabelecer um local seguro para a população judaica, após as perseguições sofridas ao longo dos séculos, seus críticos consideram que a ideologia política por trás desse movimento é racista e colonial, sendo um obstáculo para a paz no Oriente Médio.

Para entender melhor o movimento político por trás da criação do Estado de Israel, a Agência Brasil entrevistou dois especialistas sobre o tema.

A primeira entrevistada é professora de pós-graduação em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais Rashmi Singh. De origem indiana, ela estuda a questão árabe-israelense há mais de 20 anos e se especializou em temas como terrorismo, radicalização, crimes transnacionais e violência política.

O segundo entrevistado é historiador e professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Michel Gherman. Judeu, ele também é assessor do Instituto Brasil-Israel e estuda temas como o antissemitismo e o sionismo.

Confira trechos da entrevista:

Agência Brasil: O que é o sionismo e como podemos defini-lo?
Rashmi Singh: O sionismo é uma religião-política. É um jeito de pensamento que tira conceitos que são religiosos e coloca esses conceitos dentro de uma realidade moderna para objetivos contemporâneos e específicos.

É um movimento fundado na religião para objetivos políticos e modernos. Essa conexão entre religião e política é uma religião-política. Isso é a diferença entre judaísmo, que é religião, e sionismo, que é a combinação da fé e do pensamento religioso com objetivos políticos – nesse caso, o estabelecimento do Estado de Israel.

O sionismo começou em 1896 com um livro escrito pelo Theodor Herzl. Ele começou a falar do direito de os judeus terem um Estado próprio para viver em paz com sua identidade. O local foi a Palestina porque tem uma ligação histórica e bíblica.

Michel Gherman: Em resumo, eu diria que o sionismo é um movimento que se constitui pela construção da identidade nacional do povo judeu. Note que eu não falo sobre Estado de Israel quando defino o sionismo porque algumas correntes do sionismo, que é um movimento diverso, não têm como objetivo final a construção do Estado de Israel.

Tem correntes que falavam sobre uma confederação nacional árabe-judaica, algumas correntes falavam sobre autonomia nacional judaica e há correntes hegemônicas que falavam sobre um Estado nacional judaico.

Essa definição que eu dei é uma definição que tenta ocupar todos os espaços do sionismo, que dá conta de todos os projetos sionistas. O sionismo é influenciado por outros nacionalismos para oferecer uma resposta para a seguinte pergunta: qual a melhor solução para a questão judaica?

A gente pode entender que o sionismo se consolidou como resposta mais correta porque os judeus que saíram da Europa para construir um Estado-nação sobreviveram, os judeus que permaneceram na Europa falando das outras alternativas foram vítimas do Holocausto.

24/10/2023, Rashmi Singh, professora de relações internacionais da PUC Minas, durante entrevista a TV Assembleia MG. Foto: Frame/TV Assembleia MG
24/10/2023, Rashmi Singh, professora de relações internacionais da PUC Minas, durante entrevista a TV Assembleia MG. Foto: Frame/TV Assembleia MG

Rashmi Singh, professora de relações internacionais da PUC-MG – Frame/TV Assembleia MG

Agência Brasil: Como se explica o êxito da criação do Estado de Israel? Por que o sionismo foi vitorioso na região da Palestina?
Rashmi Singh: O conceito de sionismo é muito baseado na Europa e devido à perseguição que os judeus sofriam na Europa. Então, Theodor Herzl fomentou uma organização sionista que promoveu a migração judia para a Palestina para construir um Estado para os judeus. Nessa época (final do século 19), era uma organização para juntar fundos e comprar territórios na Palestina para colocar as comunidades de judeus da Europa nesse local. Mas eles não conseguiram comprar muita terra porque já era uma área ocupada.

A situação começou a mudar depois da 1ª Guerra Mundial com a criação do Mandato da Palestina do Reino Unido. Antes mesmo do Reino Unido ganhar o controle do território palestino, o governo britânico lançou a Declaração de Balfour, em 1917, que deu apoio total ao estabelecimento dos judeus nesse local. A partir daí, temos enormes migrações de judeus europeus para a Palestina e, ao mesmo tempo, começou uma reação dos árabes contra essa migração.

Eles emigraram e começaram a comprar territórios e tinham um conceito de propriedade que não existia na Palestina. Os palestinos não tinham propriedade da terra. Nas décadas de 1920 a 1940 ocorre uma escalada da tensão entre os judeus e os árabes na região.

Por isso, as pessoas que estudam o conflito categorizam Israel como um Estado colonizador porque ele surge de uma ideologia europeia. Os palestinos não aceitaram a Resolução 181 das Nações Unidas [que sugere a criação de dois Estados, um para os judeus e outro para os palestinos] porque o Estado seria uma imposição dos colonizadores no território que era historicamente deles.

Então, as pessoas falam que a religião é a raiz do problema. Mas religião é a desculpa, é uma parte para entender o conflito, mas a raiz do conflito é o território.

Michel Gherman: São vários motivos. O primeiro é a hegemonização dentro do movimento sionista de uma corrente específica que foi hegemônica até os anos de 1970, que é o sionismo migratório de esquerda. É uma corrente trabalhista e social-democrata que tem como ideia principal a migração judaica da Europa e de outros países para a Palestina.

O objetivo era fazer essa migração sem acordo com as potências, principalmente ingleses e turcos, e também sem chegar a um acordo com os palestinos. Tinha que migrar e fazer com que as coisas acontecessem depois da migração por causa de duas questões: a disputa das potências naquela região enfraqueceria o projeto sionista e também pelo crescimento do antissemitismo.

A que se hegemonizou foi a corrente migratório social-democrata por causa das condições concretas da realidade. Primeiro, porque eles conseguiram produzir uma migração por conta do antissemitismo na Europa que aumentava muito e os judeus não tinham para onde ir porque as fronteiras foram fechadas, tanto nos Estados Unidos, no Canadá, na Austrália, na Argentina e no Brasil. Então, o destino palestino era o único possível para os judeus naquela época.

E, segundo, por causa do nazismo que provou que a única alternativa concreta era a criação de um Estado judeu na Palestina. A descoberta dos crimes nazistas foi tão forte que acabou impondo essa decisão do Estado judeu.

>> Leia mais: Israel, Hamas, Palestina: entenda a guerra no Oriente Médio

Agência Brasil: O Estado de Israel privilegia os judeus? Há plena cidadania para outros povos dentro de Israel?
Rashmi Singh: É uma pergunta difícil porque você tem uma parte de árabes-israelenses dentro de Israel, mas eles têm, com certeza, menos direitos. Mas é difícil falar sobre isso porque não é uma coisa clara, tem muitas exceções. Mas, no geral, o que vemos, claramente, é que você tem essa divisão entre os judeus e a população árabe dentro de Israel.

Você vê também claramente diferenças entre judeus dentro de Israel. Em geral, o Estado tem menos espaço e menos oportunidades para judeus não europeus, como judeus africanos e asiáticos. Mas, com certeza, Israel é o local onde qualquer judeu pode migrar e se integrar à sociedade.

Michel Gherman: A própria questão entre os judeus, de quem pode e não pode ter cidadania plena, é problemática entre os próprios judeus porque o sionismo é um movimento profundamente secular e radicalmente não religioso na sua hegemonia. Sionismo não tem nada a ver com identidade religiosa, tem a ver com identidade nacional. Então, a questão religiosa é uma questão mal resolvida dentro do Estado de Israel.

É claro que há uma diferença entre cidadãos judeus e cidadãos árabes pelo próprio movimento nacional que – como qualquer movimento nacional – produz essa diferença entre os vencedores e derrotados do projeto, principalmente movimentos nacionais que têm referências étnico-nacional, que é o caso de Israel.

Nos últimos anos, a partir da década de 2000, tem se consolidado a corrente revisionista de direita que produz uma referência de que o Estado judeu tem que privilegiar cidadãos judeus, e um judeu de tipo específico: os religiosos-ortodoxos.

Isso tem se consolidado mais nos últimos cinco anos porque o [primeiro-ministro de Israel] Netanyahu tem caminhado para a extrema-direita sionista e ela implementou, há 4 anos, a lei nacional que colocou o privilégio da língua hebraica e do lar nacional judaico.

Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e assessor do Instituto Brasil-Israel, o historiador Michel Gherman
Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e assessor do Instituto Brasil-Israel, o historiador Michel Gherman

Historiador Michel Gherman, professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e assessor do Instituto Brasil-Israel – Michel Gherman/Arquivo Pessoal

Agência Brasil: Como explicar o movimento de judeus antissionistas?
Rashmi Singh: Todos os sionistas são judeus, mas nem todos os judeus são sionistas. Por muito tempo, qualquer crítica contra Israel foi pintada como antissemitismo.

Existia antes, em Israel, uma época em que uma parte dos sionistas eram de esquerda e tinham uma política mais moderada com espaço para negociação entre palestinos e judeus. Agora, com a violência entre Israel e Palestina, temos visto é que essa parte de esquerda está totalmente destruída.

Agora, temos uma direita mais radical com apoio e presença da extrema-direita. A extrema-direita não quer a solução de dois Estados. Eles querem um território maior do que a fronteira de hoje em dia. Do lado palestino, vemos também cada vez menos espaço para políticos moderados.

Michel Gherman: Entre as correntes antissionistas têm as ultraortodoxas, que são contra a noção de Estado porque o Estado não é um conceito judeu na sua origem.

Mas há também os que não são hostis à ideia de Estado, mas não são parte do movimento sionista. Estão no Estado, até participam do parlamento, mas não são adeptos do movimento sionista.

Tem ainda as correntes liberais que consideram que a identidade judaica é basicamente uma identidade religiosa e são contrários à construção de um Estado nacional judaico. Essa hoje é muito fraca, mas já foi forte até os anos 1960.

Tem outra corrente de esquerda que diz que a construção do Estado-nação vai privilegiar um grupo e prejudicar outros. Então, você tem uma tradição judaica muito poderosa do movimento antissionista que vai desde a esquerda até os ultraortodoxos.

Agência Brasil: Houve uma época em que cristãos, judeus e mulçumanos viveram em paz na região da Palestina?
Rashmi Singh: Com certeza. Nós sempre tivemos uma população de cristãos e judeus por causa de Jerusalém, que é uma cidade sagrada para as três religiões. Existem também os judeus árabes. Você tinha uma população enorme de judeus no Iraque e em outros países árabes.

Agora, uma população enorme saiu da Palestina por causa da criação do Estado de Israel, que virou um grande problema no Oriente Médio e criou muito ódio entre comunidades que existiram, na maior parte do tempo, em paz.

Obviamente, não foi uma situação de paz constante, tínhamos pontos com guerras e perseguições, mas não tinha essa coisa de guerra permanente como vemos agora.

Michel Gherman: Tem muita narrativa ideológica sobre isso. Há uma narrativa que diz que quem criou a inimizade entre judeus e palestinos foi o sionismo.

Eu acho que é um exagero porque o Império Turco-Otomano garantia a autonomia cultural mediante o pagamento de impostos, mas foi justamente nessa época que você começou a ter os primeiros tensionamentos entre judeus e árabes na Palestina a partir da percepção de que essas autonomias culturais criavam movimentações em direção a, por exemplo, o nacionalismo judaico.

É claro que a criação de um Estado naquela região é motivo de tensionamento, mas os primeiros judeus mortos naquela região foram justamente judeus não sionistas durante a década de 1920.



Via Fonte