Novas perspectivas, novos mundos muitas vezes se nos descortinam nascidos de perguntas que nem sempre soam oportunas à primeira vista. A eterna insatisfação do homem pós-moderno, seu desejo incontrolável de posse e de dominação, seu sonho profano de emular a onipotência divina vão ganhando a dimensão do real conforme inventava novas demandas, fomentava novas necessidades e, assim, resolvia os problemas que nenhuma das mais evoluídas civilizações que o antecederam ousaram delirar. Surgiram objetos, serviços, mecanismos, programas, dispositivos antes completamente alheios ao dia a dia do cidadão comum até então, e mesmo a vida, bem mais valioso, patrimônio inalienável cujas infinitas possibilidades, de adaptação, de transformação, de beleza nunca se vai poder estimar com precisão irretocável, tende a seguir o padrão de uma qualquer parafernália eletrônica de que se desfruta até pifar, joga-se fora e troca-se por outra, melhor, com muito mais funções. O artificialismo da vida — ou do que passa a se entender como vida — é o núcleo do estimulantemente perturbador “Jung_E”, de Yeon Sang-ho.

O coreano, diretor de uma das produções mais incensadas do cinema contemporâneo, explora a iminência de um futuro desesperador, em que o gênero humano luta contra sua própria espécie a fim de adequar-se à superioridade de autômatos e sistemas altamente sofisticados, capazes de monitorar a pouca atividade humana em oitenta abrigos, dispostos entre a Terra e a lua depois da aniquilação da antiga casa da humanidade. Se “Invasão Zumbi” (2016) repisava o mote do apocalipse usando o tropo de um homem cujo casamento recém-acabado o empurra para o vício em trabalho, amenizado somente com a malfadada viagem de trem com a filha, momento em que se veem forçados a enfrentar as criaturas monstruosas que eliminam pessoas sem ter de se preocupar com cadeia ou inferno, aqui Sang-ho faz ajustes pontuais e segue com suas obsessões, trocando mortos-vivos por máquinas hipersensíveis e androides, ubíquas na nova ordem que se apresenta.

A introdução de “Jung_E” presta-se a um resumo fiel do que se vai assistir no transcurso de bem contados 99 minutos. Minucioso como sempre, o diretor-roteirista explica que a elevação do nível do mar obrigou os terráqueos a se refugiar nos tais abrigos, sendo que, ainda assim, surgiram outros problemas. Os abrigos 8, 12 e 13 formam o País de Adrian, território para onde migrou a população mais rica, e que volta-se contra os habitantes dos outros abrigos e do que sobrou da Terra. O planeta, agora uma gigantesca e melancólica favela, serve de ninho para os desditosos homo sapiens, que sabem cada vez menos e se conformam em produzir a munição empregada nessa guerra interestelar, malgrado o filme passe longe, acertadamente, da franquia de George Lucas. Um bem coreografado embate protagonizado por uma guerreira e um robô coroa o prólogo.

Entra em cena Yun Seo-hyun, a cientista interpretada por Kang Soo-yeon (1966-2022). A exemplo do personagem central de “Invasão Zumbi”, Seo-hyun também mergulha fundo em suas atribuições de ofício e emerge convicta de que pode fabricar o soldado perfeito, forte o bastante para vencer uma guerra que, parece, vai se estender pela eternidade, e inteligente a ponto de absorver a fraqueza do inimigo como uma qualidade para si. A grande virada do enredo é a decisão de Seo-hyun de usar como matriz a própria mãe, Yun Jung-yi, de Kim Hyun-joo, heroína de guerra mantida em coma há mais de três décadas.

As discussões de fundo filosófico, como a correção ou hediondez de se usar seres humanos como se fossem sucata, reaproveitados para fins pretensamente altruístas, transformam-se em simples estética em meio à grandiosidade visual — em que pese Sang-ho mencionar a certa altura que sua mocinha deve frequentar uma tal aula de ética. A propósito, não deixa de ser lastimavelmente irônico que Soo-yeon viesse a morrer pouco tempo depois, provocando comoção na Coreia do Sul. Wittgenstein explica.


Filme: Jung_E
Direção: Yeon Sang-ho
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Ficção científica/Ação/Aventura
Nota: 8/10



Via R7.com