Segundo o livro “Fogo de Junho: 20 Centavos, Romance de Geração para Geração sem Romance”, o Brasil recente nasceu nas manifestações de rua de junho de 2013. Este “romance de geração” foi escrito por Ademir Luiz, colaborador regular da Revista Bula, e publicado pela Editora Novo Século em 2021, tendo sido vencedor do Prêmio Hugo de Carvalho Ramos, a láurea literária mais antiga em atividade no país, tendo sido criada em 1944. As famosas Jornadas de Junho, que mexeram com muitas vidas nos anos subsequentes, são o pano de fundo histórico para uma história humana, demasiada humana.
O romance se inicia com o protagonista se dirigindo para uma manifestação motivada pelos 20 centavos de aumento nas passagens de ônibus, que inflamaram as redes sociais. Como se sabe, esse foi o estopim, somado com diversas outras pautas (corrupção, insegurança, gastança com a Copa do Mundo etc), para que a indignação deixasse o virtual e passasse para as ruas. O protagonista, chamado apenas de “Zé” (ele sonega seu sobrenome) foi mais um entre os milhões que saíram de casa. Essa é a desculpa para que ele conte suas “aventuras de homem comum” dentro e fora das manifestações, das quais participou ativamente. Amores, dissabores e porradas estão presentes, narradas sempre com humor ácido e autocrítica. Como afirma o próprio narrador, ele faz parte de uma “geração sem romance”. Ex-cara pintada, ex-desocupado e aluno nota 7,5, adorava usar camisetas falsificadas de clubes de futebol. Recém-formado, tem as incertezas típicas de um jovem latino-americano “sem dinheiro no banco ou parentes importantes” e as dúvidas de um leigo na arte do amor e do batente.
Narrado em primeira pessoa, sem intermediários e sem amortecedor, Zé nos leva para dentro de sua vida em acontecimentos que ilustram o caos cultural, social e político do Brasil. Zé parece percorrer um corredor polonês (quem é da geração conhece o significado dessa expressão), observando os quadros absurdos de um país em retrospectiva e a sua própria existência, enquanto apanha e reage com sarcasmo e indignação cínica. As imagens evocadas pelo autor são impagáveis: Papa virando unidade de medida de tempo, presidente cheirando cocaína por orifícios pouco usuais e mulheres ativistas que enfrentam policiais empunhando enormes pênis de borracha em riste. Esses são apenas alguns dos exemplos que permeiam relatos entre o cômico, o trágico e o surreal. O personagem faz uma análise à seco da realidade brasileira, questionando suas próprias escolhas, as escolhas dos amigos acadêmicos, das amantes e dos companheiros de marcha. Essas escolhas, é justo perguntar, levaram as invasões dos prédios públicos de Brasília que assistimos em 2023?
Os capítulos, ao mesmo tempo inspirados e ironizando o Cortázar vanguardista de “O Jogo da Amarelinha”, estão em ordem temporal distinta, podendo-se optar por pelo menos três formas de leitura: a corrida, a sequencial ou “a que se desejar”. A liberdade de escolha não comprometerá a bela história, situação que, ouso afirmar, supera o hermetismo do escritor argentino (será uma rivalidade Brasil X Hermanos?). Encontraremos no livro muitas referências a situações de época, citações de filmes, livros, escritores, pensadores, mundo futebolístico, vida acadêmica, política e muito mais. Um convite a nostalgias saudáveis. Destaque para nudez de Diadorin no clássico “Grande Sertão: Veredas”.
Ademir Luiz mantém o leitor atento. O livro é bem situado cronologicamente e tão ambientado com a história que por vezes parece que estamos num bar, a poucos metros de Zé, escutando-o conversar com seus amigos. Podemos nos identificar em vários momentos com ele. Um desses momentos se refere ao preço inevitável que devemos pagar por nossas escolhas, escolhas essas que permeiam um espaço paralelo, onde acessamos a dor e a fantasia.
“Fogo de Junho” trata de um período crucial da história do Brasil, que ainda precisa ser devidamente explorado por nossa literatura. Por isso é muito atual. É um livro que “para em pé”, como o autor costuma dizer. A obra é provocadora. Instiga a reflexão sobre uma geração cuja grande onda se formou, mas não chegou a alcançar a praia. Tampouco sabia como. Uma geração que recita o “E agora, José”, dE Drummond, que canta “Inútil”, do Ultraje a Rigor, e o “Que país é esse?”, do Legião Urbano. Recita e canta, mas não escuta a própria voz.