A compositora Thayssa Menezes desfilou neste ano pela primeira vez sem a identificação “Compositor”, no masculino, em suas costas. Isso só foi possível porque ela chegou à presidência da ala dos compositores da Acadêmicos do Cubango, na Série Prata do carnaval carioca, e pediu que o óbvio fosse considerado: mulheres também podem ser compositoras de sambas-enredo.
“Existem pouquíssimas, de se contar com os dedos da mão, mulheres ocupando esse lugar, e, então, nós somos masculinizadas. As mulheres nas alas dos compositores têm que vir com roupas masculinas, porque os carnavalescos têm um parâmetro de que essa ala é masculina. Eu, na minha ala, neste ano, mandei fazer a camisa escrito compositores”, disse.
A mudança de poucas letras e muito significado é um exemplo de uma série de questionamentos levantados nos últimos anos sobre o domínio de homens e brancos em uma festa com forte herança de tradições matriarcais e africanas. Abertas as notas dos jurados do Grupo Especial neste ano, personalidades negras e ativistas antirracistas ecoaram outro tema, “onde estão os negros e os saberes ancestrais na avaliação do carnaval?”
“O carnaval está vivendo uma insurgência negra, que está voltando a reivindicar essa essência, esse fundamento, de olhar para a escola de samba como um terreiro, de reivindicar esse matriarcado negro que estava na construção do que a gente entende como escola de samba”, explica Thayssa, que também é pedagoga e pesquisadora do carnaval.
“Eu encaro essa insurgência como resultado de um conjunto de políticas públicas que aconteceram, como a Lei de Cotas e a garantia do ensino da cultura africana e afro-brasileira dentro das escolas. A gente está vivendo agora as pessoas fruto dessas políticas públicas sendo inseridas no carnaval”, disse.
A pesquisadora aponta que homens brancos são a grande maioria nas presidências, direções e outros postos de comando das escolas de samba, e também acabam controlando o que é considerado a concepção artística da festa, que está nas mãos do carnavalesco.
“A figura do carnavalesco, que é a figura dessa pessoa que é imbuída de conhecimento, que vem da faculdade de Belas Artes trazer a arte erudita mesclada com a popular para essa comunidade, é a figura do homem branco”, avalia. Ela vê como lugares esperados para as mulheres negras aqueles marcados pelo bailado, como a porta-bandeira, a passista e a baiana.
“Esses lugares que as mulheres ocupam são vistos como lugares hierarquizados de forma menor. É como se as mulheres ocupassem a base da pirâmide. Não que exista um valor menor para a baiana. A baiana é uma das maiores figuras dentro da escola de samba. A gente valoriza e respeita, mas a gente também quer estar em outros espaços”, defende.
Apesar desse domínio branco e masculino, Thayssa destaca avanços que vêm quebrando esse paradigma, como o carnavalesco André Rodrigues, da Beija-Flor, que propôs com o enredo deste ano uma revisão da história do Brasil, para recuperar o papel dos negros e outros grupos excluídos na Independência e outros processos históricos.
“Esse discurso não é novo, já existia nas conversas nas escolas de samba, mas como contradiscurso. Mas quando a gente tem dentro dessa figura do carnavalesco uma pessoa preta que vai reivindicar isso, não como contradiscurso, mas como o próprio discurso do enredo, isso é ganho muito grande”, comemora. “O que a gente tem conseguido aos poucos é muito caro. E acho que não tem volta. É daí pra frente”.
Autoestima
Se homens negros já são raros no posto de carnavalesco, mulheres negras são ainda mais. Nascida em Nilópolis, na Baixada Fluminense, Winnie Nicolau é uma pioneira no cargo, assinando o carnaval na Pimpolhos da Grande Rio, escola mirim do carnaval carioca.
“Passei por uma montanha de emoções juntas, de me tornar uma pessoa que representa outras, de ser a primeira pessoa a fazer aquilo, de ter uma responsabilidade como pessoa preta carregando isso. Mas eu vi que eu entreguei. Abri essa porta para que viessem outras mulheres pretas”, disse.
No desfile concebido por Winnie, transbordou sua experiência de vida como mulher preta. A escola contou a história do livro O Pequeno Príncipe Preto, de Rodrigo França, que trabalha a autoestima e o afeto de uma criança preta.
“Eu joguei tudo que eu vivi, porque já fui essa criança que precisou ter a autoestima reforçada por causa do meu cabelo, do meu nariz, do tom de pele. Por ser retinta, o bullying era muito mais cruel”, disse. “Eu procurei jogar toda a minha trajetória desde quando eu era criança até hoje, e como eu quero que uma criança hoje seja tratada, já que sou mãe de uma menina negra e tia de um menino negro. Apliquei tudo isso dentro do desfile e deu super certo”.
Winnie vê seu pioneirismo como uma possibilidade de levar transformação não apenas ao carnaval, mas aos componentes das escolas de samba que estão em contato com o enredo e podem sair da avenida fortalecidos por ele. E como sua escola é uma agremiação mirim, são as crianças da comunidade que ela busca inspirar.
“Falar para a minha filha é fácil. Hoje o meu papel é falar fora de casa, para trazer uma autoestima. Se você não tiver nem a autoestima, a gente está fazendo o que o sistema quer, que é matando o que tem dentro daquela criança desde pequeno para se tornar o adulto que eles querem, inerte, de baixa autoestima, e que não se reconhece como pessoa preta e não sabe se posicionar socialmente. Meu papel hoje é quebrar isso”, disse.
Ausência
A ausência das mulheres em posições decisórias na história do carnaval não quer dizer que elas tenham ficado de fora da construção do que são os desfiles das escolas de samba. A jornalista e doutora em Memória Social Bárbara Pereira, pesquisadora do carnaval, conta que o apagamento das mulheres vem desde a fundação das escolas de samba, processo em que tiveram atuação decisiva.
“Em muitas escolas, as fundadoras ficaram de fora das atas de fundação, só os homens assinaram. As mulheres que estavam ali fazendo de tudo para que as escolas existissem não estão nas atas. E quando você olha a trajetória, desde os anos 30 até hoje, o número de mulheres como presidente de escola é pífio perto dos homens”, disse. “As escolas de samba reproduzem o machismo que existe na sociedade. Hoje há uma certa desconstrução, entre muitas aspas, mas as escolas continuam sendo machistas. Os papéis de homens e mulheres desde o começo dos desfiles estão definidos como os papéis sociais. O papel de poder é o do homem”.
Bárbara cita que há exceções, como a presidente da Imperatriz Leopoldinense, Cátia Drummond, ou a carnavalesca Rosa Magalhães, mas, mesmo nesses casos, elas estão cercadas por homens em outras posições decisórias.
“É um universo predominante masculino”, define. “O dia que tiver uma escola de samba em que a presidente é mulher, a carnavalesca é uma mulher progressista, a enredista é mulher, a diretora de barracão é mulher. Enfim, um conjunto feminino, de fato, no topo da pirâmide da escola de samba, não estou dizendo que tudo seria diferente, mas a gente nunca experimentou isso, uma escola tendo essencialmente decisões femininas”, defende.
Autora do livro Trajetórias e Memórias de Passistas do Carnaval Carioca, a pesquisadora discorda de quem aponta machismo na exposição dos corpos femininos na Marquês de Sapucaí, afinal, o carnaval é a festa da sensualidade. Para Bárbara, o machismo está no fato de esse ser o único lugar de visibilidade que é esperado delas.
“Não critico a mulher que recebe essa visibilidade. Ela tem que existir, porque a mulher tem que estar onde ela quiser. Se a mulher quer estar em frente à bateria seminua, beleza. Só que os outros espaços das escolas de samba deveriam ser ocupados pelas mulheres também. É o que eu não consigo ver quando olho a trajetória do carnaval. Não vejo avanço nesse sentido”, reclama.
Entre as poucas mulheres que chegaram à presidência de uma escola no Grupo Especial está Elizabeth Nunes, a primeira mulher que presidiu a Acadêmicos do Salgueiro, entre 1986 e 1988. Seu trabalho é reconhecido como responsável por tirar a escola de um período de crise.
“Luxo e requinte passaram a ser marca da escola que, através de sua administração, passou a conquistar lugar de destaque entre as escolas de samba”, diz nota de pesar assinada pelo presidente do Salgueiro, André Vaz, após a morte da ex-presidente, em 2020.
A filha de Elizabeth, a cantora Liesbeth Nunes, disse que sua mãe tinha um profundo envolvimento com a comunidade, colaborando em tarefas diárias do barracão e da quadra, ao mesmo tempo em que fazia a ponte entre a comunidade do Morro do Salgueiro e o público e artistas da roda de samba que ela organizava na zona sul.
“Ela já era muito querida no Salgueiro, e as mulheres já mandavam muito no Salgueiro. Elas sentavam com a diretoria e decidiam as coisas, mesmo sem ter cargo”, conta Liesbeth, que lembra que sua mãe não se intimidou por ser a primeira mulher a presidir a escola. “As pessoas não contavam que uma mulher seria presidente. E minha mãe era mão de ferro, minha mãe mandava, dava ordem pra homens, brigava, era exigente no barracão. Minha mãe foi amada e odiada. Agora, a maioria do morro só fala bem dela, que aquele tempo era o tempo bom do Salgueiro”.
A cantora lembra que mesmo o fato de sua mãe ser bonita, bem relacionada com artistas e poderosa no mundo do samba, não impediam que ela fosse questionada como mulher em uma posição de poder. “O que aconteceu foi que muitos homens passaram a ter muita inveja dela, queriam acabar com ela. Ela foi invejada 24 horas. Ela fala que não sofreu [machismo], mas ela não dura muito tempo na presidência mesmo tendo 40 anos de escola. Ela preparou toda a escola para ser campeã. Ela fez toda a cama e tiraram ela quando o Salgueiro saiu da lama”.
Além do legado na agremiação tijucana, Elizabeth deixou o samba como herança para a filha, que trava suas próprias batalhas para marcar seu lugar como intérprete e compositora no carnaval das escolas de samba. Em sua ala de compositores no Salgueiro, ela disse que são sete mulheres e 200 homens.
“Na disputa de samba-enredo, que hoje em dia é milionária e tem que chegar chegando, e os puxadores são homens, é raridade uma mulher. Eu já puxei, mas já ouvi que mulher cantando não tem nada a ver, que tem que ser um homem”, disse, acrescentando que já disputou com suas composições em várias escolas e cantou no carro de som neste ano nos desfiles do Salgueiro, Anil e Estácio de Sá.
“Pra vir uma mulher puxando o samba na avenida, eu não sei quando vai acontecer. A gente já vê puxando ao lado do homem, mas sendo a puxadora mesmo [intérprete principal], eu não consigo nem imaginar. Só uma escola muito atrevida e corajosa para fazer isso, porque eles têm medo de perder ponto. A mulher participa, mas nunca é a puxadora oficial. Até porque para a mulher ser a puxadora oficial, tem que ser no tom dela e o restante tem que vir atrás dela. Hoje ela tem que cantar no tom do homem”.
Gêneros em debate
A reivindicação de espaço na estrutura das escolas de samba passa também por um conflito entre as estruturas ancestrais concebidas no desfile e os questionamentos ao binarismo de gênero, ainda sem soluções simples. As regras do desfile na Sapucaí, por exemplo, exigem que apenas mulheres estejam na ala das baianas, que tradicionalmente homenageia as mães de santo, e a performance do casal de mestre-sala e porta-bandeira se dá com o termo casal contemplando apenas homem e mulher. Da mesma forma, passistas performam coreografias masculinas e femininas em seu samba no pé, seguindo a tradição dos malandros e cabrochas que marcavam a boemia dos tempos em que nasceu o carnaval moderno no Rio de Janeiro.
O pesquisador Rodolfo Viana ouviu e observou, em seu trabalho de doutorado, os dilemas enfrentados por passistas gays nas escolas de samba. Ele pondera que, de maneira geral, as manifestações populares brasileiras estilizam e encenam práticas facilmente reconhecidos por qualquer pessoa que assista, como a sedução do homem à mulher, o que se dá também nas quadrilhas juninas e nas danças tradicionais do norte do Brasil.
“Os festejos têm um código de comportamento em que parece que só existe a vida heterossexual para uma performance. E aí mora um grave conflito com os tempos atuais, que divide opiniões, gera desconfortos, tretas e reprodução de preconceitos. Na minha pesquisa, escolhi olhar para a prática da tradição e para os tempos em que vivemos e discuti ‘quem disse que malandro precisa ser macho?’. Pois é isso que é esperado do homem passista, independente da orientação sexual. É a hora que a tradição vira uma exigência para cumprir uma regra arbitrária de gênero, que nem de perto quer saber de ter um bamba do samba se parecendo com uma bicha”.
A colisão entre a tradição dos passistas e a diversidade sexual é um tema sensível nas escolas, disse o pesquisador, já que passistas gays não “têm como desinstalar de seus corpos a manifestação de sua homossexualidade”. Viana argumenta que a tradição busca eternizar o malandro macho, mas deveria ter espaço também para a bicha malandro, com Madame Satã como uma referência.
“Imagino essa figura tão poderosa da Lapa, que duvido que o Seu Zé [Pilintra] não tiraria o chapéu em gesto de respeito. Ou seja, o mundo do carnaval brasileiro é criativo demais e vai respondendo os próprios dilemas da tradição que esse mesmo mundo inventou. Isso não é conciliação, é inteligência popular que busca saídas para um futuro, onde, de fato, a liberdade seja vivenciada por todo mundo”.
E sob os holofotes da Marquês de Sapucaí, uma das posições que recebe maior destaque da imprensa é a rainha de bateria, que algumas escolas reservam a passistas da comunidade, mas grande parte entrega a “famosas”. Também nesse lugar, começam a surgir novidades, como o rei de bateria, posto que o maquiador Juarez Souza ocupou pelo segundo ano seguido na Acadêmicos de Niterói. Este ano, pela primeira vez, ele veio sozinho à frente da bateria da escola.
“Eu vim bem seguro com a minha escola, porque conheço todos. Eu me senti abraçado. O público que está assistindo, na minha visão, quer ver o espetáculo, e eu acho que quando você entrega o que o público quer ver, o gênero fica secundário. Em nenhum momento vi alguém fazendo caras e bocas, algum tipo de preconceito”, disse Juarez, que foi acompanhado de perto pelo marido e pela mãe. “Meu marido me dá muito apoio, está sempre comigo desde quando a gente começou. Quando desfilei de destaque, ele que amarrou meu costeiro. Ele me dá o maior apoio e fica mais nervoso que eu, às vezes”, disse.
Componente de escolas de samba há 13 anos, Souza conta que já foi passista, já desfilou em ala, já foi destaque e até sonhava em ser rei de bateria, mas não achava que um dia isso seria possível. Esse, aliás, é um sonho secreto de muitos homens passistas, revela.
“Acreditava que era impossível pelo preconceito. Mas a partir do momento que você vê um homem à frente da bateria, ou uma trans, como foi na Unidos de Padre Miguel, isso abre uma porta para várias pessoas sonharem. Eu acho que ali é um lugar de sambista. Não importa se é homem cis, homem trans, homem gay, homem hétero, mulher cis, mulher trans. É um lugar para quem é apaixonado pelo samba”, afirma.