Filmes são, em geral, indicadores de precisão quase imbatível quanto a apontar as mudanças pelas quais as sociedades ao redor do mundo anseiam, bem como também têm o condão de, antes que nos deixemos fazer presas da admiração impensada por possíveis serviços e ideias, elencar uma infinidade de razões bastante pertinentes — e elementares — quanto à impropriedade e mesmo aos perigos de tais revoluções. Spike Jonze erige argumentos sofisticados, da maneira mais orgânica que alguém pudesse conseguir, e faz de “Ela” um verdadeiro tratado schopenhaueriano acerca da esquizofrênica natureza do homem, sempre a um passo do precipício da loucura, perdido que está desde o princípio dos tempos, em meio à maldição de suas próprias vontades. O trabalho de Jonze toca como poucos o pensamento filosófico, prezando por nunca ser apenas trágico ou esperançoso, mas corajosamente original ao encontrar uma saída para amalgamar as duas vertentes de um mesmo assunto, em todos os complexos personagens que integram o enredo. A começar, claro, pelo protagonista.

Em outra de suas irretocáveis performances, alcançando as notas mais altas e raras quanto a definir a natureza humana como um amontoado de incoerências e necessidades, Joaquín Phoenix carrega o filme nas costas, sem que isso pareça exigir-lhe qualquer medida de sacrifício, pelo contrário. Ainda que esteja já numa quadra da vida e num estágio da carreira em que provas de competência sejam mera formalidade, o talentoso Phoenix é capaz de reinventar-se a cada nova história, malgrado não se vislumbre nela quase nada de fundamentalmente renovador, a exemplo do milagre que encarnara com seu Coringa na versão de Todd Phillips, de 2019, que tentou pretensas explicações para a vilania do antagonista mais perturbadoramente carismático das tramas encabeçadas pelo Homem-Morcego. Aqui, o diretor-roteirista reserva para ele a doçura meio enjoativa de Theodore, um escritor inaugurando a meia-idade do jeito mais melancolicamente comum possível: separado, relutando em assinar o divórcio que há de libertar a si e a Catherine, de Rooney Mara, numa participação afetiva e determinante na virada do segundo para o terceiro ato — muito mais para ela que para ele, poder-se-ia cravar apressadamente; no entanto, Jonze trata de equilibrar o jogo em favor de seu personagem central —, mas num período de glória no trabalho. Para que não se confunda quem é mesmo o autômato do filme, Theodore começa a acusar o golpe e se lança a uma legítima batalha para reaver o que a vida lhe tirara. Depois de uma experiência frustrante num dos patéticos serviços de telessexo, a luz no fim do túnel o socorre sob a forma do sistema operacional que instalara no intuito de conferir um pouco mais de ordem ao caos de dezenas de e-mails guardados sem necessidade e ligações importantes perdidas.

O absurdo do mote de “Ela” é demolido com toda a graça por Scarlett Johansson, a interface do tal software autodenominada Samantha. Mesmo sem nunca entrar em cena, Johansson torce o enredo a seu talante, e por meio do que diz  — e principalmente de como diz — alcança-se com boa margem de acerto as reações de seu usuário, inclusive em assuntos nos quais, sejamos francos, ela nunca teria a possibilidade de se enfronhar, com a licença do trocadilho. O aprimoramento da inteligência artificial trouxe em seu bojo discussões estimulantes quanto à incômoda onipresença de aparelhos e algoritmos na vida do homem pós-moderno, realidade que, por evidente, o cinema absorveu logo, conforme se assiste em “Ex-Machina: Instinto Artificial” (2014), de Alex Garland, outra pérola do gênero, com o sinal trocado, mas também sobrevalorizando a tal inquestionável eficiência de nossos robôs, antropomorfizados e, não por acaso, dotados de características comuns aos belos exemplares do belo sexo. “Quem não se apaixonaria por Scarlett Johansson?”, é o que todos nos perguntamos a dada altura; o problema é que Samantha pertence a um mundo em que ninguém, nem o mais infeliz dos homens, deseja estar. E se ela vier para o lado de cá, como a Ava do filme de Garland, o mundo pode tornar-se de fato um deserto de ideias. E de corações muito mais solitários.


Filme: Ela
Direção: Spike Jonze
Ano: 2013
Gêneros: Drama/Romance/Ficção científica
Nota: 9/10



Via R7.com