Apesar de pouco afeta a certezas, pode-se dizer que a vida é feita de sonhos, os que pode-se realizar e, principalmente, os que restam latentes e dormitam num escaninho qualquer da alma do homem, como uma vida, estiolada, quase morta, como a donzela encantada à espera do bravo cavaleiro que a resgata da maldição eterna. Pensamentos os mais desvairados, que coroam as ideologias as mais absurdas perseguidas incessantemente pelo gênero humano, coroam essa vontade de vida, que vida propriamente não é, mas que assim mesmo entra na conta das insanas tentativas que fazemos quanto a exercitar o lado para além da matéria que prende-nos aqui e nos lança ao rosto com fúria que somos obrigados a suportar nossas dores, a engolir nossas ilusões e vencer a inimizade gratuita do dia que se levanta. Com a sofisticação que o define, Vincenzo Natali dá nó em pingo d’água e consegue proeza quase impossível: conferir frescor e mesmo ineditismo a “Campo do Medo”, outra das tantas novelas de terror psicológico de Stephen King.
Escrita a quatro mãos com Joe Hill, esse conto alongado sobre um certo matagal alto, como se lê no título em inglês, é adaptado por Natali de modo a extrair da narrativa tudo quanto a pena cansada de King pode apenas insinuar — o que, por óbvio, é um estigma que dói em qualquer autor, erudito ou desabridamente popular, como é o caso. Contudo, a maneira como o diretor absorve passagens específicas do livro, nas quais enxerta sua cosmovisão sobre os assuntos que King e Hill abrangem superficialmente, responde pela sutil diferença que separa em universos que se cruza uma reta em comum somente de mil em mil anos. Com um currículo exitoso na televisão americana, em cuja história cravou seu nome por meio das séries “Hannibal” (2013), coqueluche na NBC, e “Deuses Americanos” (2017), Natali explora ideias que soariam estapafúrdias e rescenderiam ao bolor do reacionarismo sob a ótica de um realizador menos cioso da gravidade do que se depreende do subtexto; em “Campo do Medo”, o absurdo trabalha em uníssono com aspectos concretíssimos da vida como ela é, num mosaico revelador das irrequietudes do que vai no espírito do homem.
Natali, King e Hill incluem no roteiro o prólogo verdadeiramente cinematográfico em que um homem e uma mulher cruzam o Kansas de carro em enquadramentos tão arejados que até se pode sentir o vento a balançar o verde das plantações cintilando a um sol no tom exato de dourado bem claro, méritos da fotografia de Craig Wrobleski. Como logo fica evidente, Cal, de Avery Whitted, e Becky, vivida pela canadense-brasileira Laysla de Oliveira, não são casados, mas irmãos — e pelo incômodo de ver aquela mulher tão jovem, bonita e enérgica, mas visivelmente desacoroçoada, levando no ventre um filho cujo pai o rejeitara, é impossível não querer que o diretor nos pregue uma peça e diga que, “sim, eles são mesmo casados; eu só quis tumultuar as coisas um pouco”. Cal e Becky se aventuram, até meio inconsequentemente, pelas estradas perfeitas do coração da América numa van já meio cansada de guerra para dar cabo de uma tarefa das mais árduas (e hediondas) de que alguém pode se ocupar, parando de quando em quando para que a personagem de Oliveira obedeça aos chamados da natureza, ainda mais impetuosos no seu estado. Numa dessas, encostam junto ao campo a que se refere a tradução em português, a princípio, insuspeito. Até que ouvem alguém aos gritos.
Como já fizera em “1922”, levado às telas por Zak Hilditch em 2017, King reforça sua concepção do Meio-Oeste americano como uma terra enfeitiçada, onde eventos fantásticos, quase sempre diabólicos, tomam substância. Em “Campo do Medo”, a aparição de Tobin, o garoto que clamava por socorro de dentro da plantação, remete à infância problemática de Cal e Becky, que em alguma medida remonta ao estado lastimável em que se encontram hoje. Will Buie Jr. rouba a cena, empanando os desempenhos admiráveis dos veteranos Rachel Wilson e Patrick Wilson como os pais de Tobin, mormente na transição do segundo para o terceiro ato, em que Natali se utiliza de uma convincente computação gráfica, impactante, mas enxuta, para mencionar uma tal rocha mágica “no centro do centro do mundo”. A trilha — sempre um capítulo à parte na grife Stephen King —, de Mark Korven, conduz o espectador ao desfecho, cuja poderosa metáfora de uma igreja do lado oposto ao do labirinto de caniços gigantescos, inspira Becky a encarar seu lado mais horrendo e tomar a atitude certa. E isso muitas vezes se faz com boa dose de necessário pânico.
Filme: Campo do Medo
Direção: Vincenzo Natali
Ano: 2019
Gêneros: Thriller/Terror/Drama
Nota: 9/10