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O filme da Netflix que todas as famílias deveriam assistir acabou de estrear na Netflix e vai lavar sua alma


Os clássicos vencem a bruma corrosiva do tempo e são capazes de resistir — ao passar dos anos, ao derruimento dos costumes, à própria morte — porque encerram uma sabedoria óbvia e invisível, que não se peja em passar ao largo das convenções. Em “Anna Kariênina”, o russo Liev Tolstói (1828-1910) crava uma das mais acertadas sentenças acerca de famílias, suas poucas venturas e suas inúmeras tragédias. Logo na primeira linha de um dos romances fundamentais da literatura de todos os tempos, o escritor fulmina quem ousa lê-lo dizendo que as famílias felizes são muito parecidas umas com as outras; as infelizes, por outro lado, essas sim fazem de sua desdita aquilo que as define e as torna únicas. Apesar da leveza inconsequente — e algo pueril —, há uma gota de Tolstói em “O Preço da Família”, a dramédia do italiano Giovanni Bognetti.

Protagonizado por Christian de Sica — o filho do grande Vittorio (ele mesmo um ex-casanova de produções despretensiosas que ascendeu ao posto de um dos três tenores do cinema da Itália do pré-Grande Guerra, junto com Visconti e Rossellini; que Antonioni não me ouça) —, o longa de Bognetti tem muito do calor afetuoso das histórias de uma era decididamente encerrada, parecendo-se ainda mais com as chanchadas de Fellini, sobretudo “E La Nave Va” (1983) e “Amarcord” (1973), nessa ordem. Esse novo cinepanettone, como são conhecidas entre os italianos as histórias voltadas à temática natalina, chega ligeiramente frio — tanto que, no Brasil, ganha o título medonho citado há pouco —, mas não menos saboroso, apesar de alguns pesares. Se não, vejamos.

O diretor-roteirista quer, antes de qualquer outra coisa, falar dos desajustes entre as gerações. Para isso, mira, claro, essa época tão mágica quanto exasperadora, cujo condão de despertar nas gentes de todo o mundo seu lado mais humano e não menos monstruoso. Carlo, o patriarca vivido por De Sica, e a mulher, Anna, interpretada por Angela Finocchiaro, andam desgostosos da vida, ainda mais sem rumo depois que os filhos tornaram-se adultos (ao menos sob o ângulo da biologia). O primogênito Emilio, personagem de Claudio Colica, e Alessandra, papel de Dharma Mangia Woods, batem cabeça em empregos medíocres numa cidade maior, principalmente a caçula, ganhando a vida como secretária de Rocco, seu namorado dentista, de Francesco Marioni. Ninguém em pleno gozo de suas faculdades mentais enxerga em nada disso problema algum — até porque Emílio e Alessandra já são bem crescidinhos aos trinta e poucos e vinte e muitos anos. Mas Anna não sente (ou não admite) o passar dos anos, muito menos que os rebentos tenham outras intenções que não experimentar pela milionésima vez sua lasanha. Para coagi-los a passarem o Natal reunidos em seus constrangimentos, como toda família normal, a dona de casa e o marido elaboram um plano — ou melhor, Anna o elabora; Carlo apenas o referenda — e ao descobrirem o verdadeiro caráter de Emilio e Alessandra, são obrigados a, agora trabalhando em dupla, inventar uma porção de outras mentirinhas brancas, que logo, por evidente, saem do controle. Nesse caldeirão de loucura refervem velhas mágoas, enquanto outras novas em folhas passam a espocar, quentes como o inferno, na cara dos quatro. Mas isso aqui é uma comédia, quase um besteirol, hem?!

Há um segmento do filme — que não revelo nem sob tortura — especialmente perturbador para mim. Tio Gian acredita desde tenra que a vida ensina, e o faz dando um ou outro sinal, ora tão sutil que gênios da semiótica não notam, ora tão desabridamente escandalosos que a sabedoria das crianças, que acusam a nudez dos monarcas sem cerimônia alguma, capta no ar. Ontem lia numa revista inglesa sobre pais que “divorciam-se” de filhos, e vice-versa. Deveria ser o caso aqui. “O Preço da Família” diverte — a sequência de encerramento é de um tragicômico digno de Oscar —, mas fica muito longe de castigar os costumes. A propósito, podem ir botando a leitura em dia (ou catar o feijão, e così via) na hora e meia anterior, porque quando Giuliana, a avó de Fioretta Mari, entra de fato na trama, quem piscar vai ter-se como a pior das criaturas por cem natais.


Filme: O Preço da Família
Direção: Giovanni Bognetti
Ano: 2022
Gêneros: Comédia/Drama
Nota: 8/10



Via R7.com

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