O inverno sobrepõe-se ao verão, gostamos e desgostamos com ou sem motivo, vamos embora pensando que na vida tudo é belo e vale tudo, descobrimos sete mares do Leme ao Pontal nos dando ao luxo de rejeitar o dinheiro e, no fim, nos damos conta de que chocolate era tudo quanto desejávamos, de preferência com Tim Maia na vitrola. A cinebiografia homônima de Mauro Lima erige a história do ídolo, um dos precursores da música negra americana no Brasil, revisitando a infância pobre na Tijuca, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, o conturbado êxodo para os Estados Unidos, a sonhada carreira nas gravadoras cujo prestígio ajudou a consolidar, o ocaso depois de anos de bebedeiras e orgias regadas a muita droga e nenhum rock ‘n’ roll. Lima enumera a miríade de acontecimentos fabulosos que perfazem a jornada de Sebastião Rodrigues Maia (1942-1998) de modo didático talvez receando que seu legado, sua história e seu talento restem devorados pelas traças da negligência cultural que empesteia nosso paraíso perdido desde Adão e Eva, o que sói acontecer com uma frequência enjoativa.
“Tim Maia” peca pelo excesso, nunca pela falta. A pletora de nomes, números, citações, referências muitas vezes acumulam-se à guisa de um trabalho escolar pouco criterioso quiçá propositalmente, a fim de emular a vida de fato balançada do ídolo, mas o tom professoral do filme torna-se quase enfaroso na narração algo protocolar de Cauã Reymond, que consegue a proeza de aparecer quase em igual proporção que o biografado, para não mencionar, por óbvio, o bendito off. À parte os acertos entre grandes distribuidoras e emissoras de televisão ainda maiores, a necessidade de se falar de tudo em detalhes, parafraseando o sucesso de outro cantor popular, até hoje chamado de rei sabe Deus por quê — e que aqui, por única vez tem sua santidade questionada em público —, joga a favor do trabalho de Lima, coautor do roteiro com Antonia Pellegrino. Passagens tão saborosas quanto ácidas, entre a verdade que a névoa do tempo borra e verte em calúnia e o lirismo, perene a tudo em qualquer época, tomam forma diante dos olhos do espectador como que por encanto. Por um segundo, tem-se a impressão de que o Síndico faz-se carne e habita outra vez em nosso meio, graças, evidentemente, as performances mediúnicas e um tanto hipnóticas de dois carismáticos protagonistas. O diretor se socorre não de um, mas de dois diretores de fotografias para que o milagre seja levado à tela, pelas mãos de Eduardo Miranda e Ulisses Malta Jr. O preto e branco inicial, do tempo em que Tião Marmita mordiscava as linguiças que a mãe punha nas quentinhas entregues nas imediações da rua Afonso Pena a fim de reforçar o orçamento (ou tomava o caldo do feijão, como o próprio confessara décadas depois) — quando presenciara também rituais pouco católicos praticados pelos capuchinhos da igreja local, na Haddock Lobo — dão lugar, num corte suave, à labuta de um Tião mais crescido perseverando na busca por um lugar ao sol. E sempre esfaimado.
Depois da breve presença de Carlos Alexandre Santana, Robson Nunes assume o personagem e eventos menos nebulosos da vida do ainda Sebastião Maia passam a ser apreciados como num folhetim, de forma muito mais sistêmica e cadenciada, como fizera o jornalista Nelson Motta em “Vale Tudo — O Som e a Fúria de Tim Maia” (2007, Objetiva), livro em que o filme se baseia. Nunes, que para melhor captar o espírito de seu personagem, engordara muito mais que o recomendado — e emagrecera a diferença —, elabora um desempenho irretocável, dando uma pálida ideia das agruras de Tião em bastidores de apresentações para uns poucos gatos pingados e o encontro com o produtor Carlos Imperial (1935-1992), um dos reis da noite carioca, além de também ser conhecido pela cafajestagem e por uma inclinação quase biológica para a puxada de tapete — da qual foi vítima não muito tempo depois. A Imperial, Tião deve o Tim, mas a ida aos Estados Unidos, onde fora recebido por uma família irlandesa-brasileira num Harlem infinitamente mais cruento que a Tijuca de meados dos anos 1960 — e onde virara um ladrão contumaz — foi por sua conta mesmo.
Um salto indefinido no tempo entrega Tim à performance delicada e comovente de Babu Santana, pai de Carlos Alexandre. Santana incorpora Tim do jeito como passou à história, o gordo boa-praça, desbocado, rápido no gatilho — agora metaforicamente, mas nem tanto — e, sobretudo, monumento nos palcos (de onde fugia vez por outra), esventrado pelo oportunismo meio à socapa do amigo e também cantor Fábio, de Reymond. A exemplo do que se passara com Imperial, Fábio teve sua parcela de mérito na construção do Tim Maia artista, mas ficam claras suas terceiras intenções à medida que a estrela sobe. O sujeito meio truculento, generoso o bastante para criar o filho de Janaína, a companheira vivida por Alinne Moraes só queria amar, e amou a sua maneira: cantando.
Filme: Tim Maia
Direção: Mauro Lima
Ano: 2014
Gêneros: Drama/Biografia/Musical
Nota: 9/10